A Vida OblĂqua
SĂł agora pressenti o oblĂquo da vida. Antes sĂł via atravĂ©s de cortes retos e paralelos. NĂŁo percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida Ă© outra. Que viver nĂŁo Ă© sĂł desenrolar sentimentos grossos â Ă© algo mais sortilĂ©gico e mais grĂĄcil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existĂȘncia feneça no que tem de oblĂquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e nĂŁo existe nisso contradição.
A vida oblĂqua Ă© muito Ăntima. NĂŁo digo mais sobre essa intimidade para nĂŁo ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblĂquo na sua independĂȘncia desenvolta.
E conheço tambĂ©m um modo de vida que Ă© suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contĂnua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excĂȘntrica. Tem um lado da vida que Ă© como no inverno tomar cafĂ© num terraço dentro da friagem e aconchegada na lĂŁ.
Conheço um modo de vida que Ă© sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chĂŁo: vida que Ă© sombra flutuante, levitação e sonhos no dia aberto: vivo a riqueza da terra.Sim. A vida Ă© muito oriental. SĂł algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. Ă como saber arrumar flores num jarro: uma sabedoria quase inĂștil. Essa liberdade fugitiva de vida nĂŁo deve ser jamais esquecida: deve estar presente como um eflĂșvio.
Viver essa vida Ă© mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto. Parece uma convalescença macia de algo que no entanto poderia ter sido absolutamente terrĂvel. Convalescença de um prazer frĂgido. SĂł para os iniciados a vida entĂŁo se torna fragilmente verdadeira. E estĂĄ-se no instante-jĂĄ: come-se a fruta na sua vigĂȘncia. SerĂĄ que nĂŁo sei mais do que estou falando e que tudo me escapou sem eu sentir? Sei sim â mas com muito cuidado porque senĂŁo por um triz nĂŁo sei mais. Alimento-me delicadamente do cotidiano trivial e tomo cafĂ© no terraço no limiar deste crepĂșsculo que parece doentio apenas porque Ă© doce e sensĂvel.A vida oblĂqua? Bem sei que hĂĄ um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, hĂĄ desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase nĂŁo dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que Ă© a Ășnica forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha. NĂłs somos de soslaio para nĂŁo comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo.
E eu vivo de lado â lugar onde a luz central nĂŁo me cresta. E falo bem baixo para que os ouvidos sejam obrigados a ficar atentos e a me ouvir.Mas conheço tambĂ©m outra vida ainda. Conheço e quero-a e devoro-a truculentamente. Ă uma vida de violĂȘncia mĂĄgica. E misteriosa e enfeitiçante. Nela as cobras se enlaçam enquanto as estrelas tremem. Gotas de ĂĄgua pingam na obscuridade fosforescente da gruta. Nesse escuro as flores se entrelaçam em jardim feĂ©rico e Ășmido. E eu sou a feiticeira dessa bacanal muda. Sinto-me derrotada pela minha prĂłpria corruptibilidade. E vejo que sou intrinsecamente mĂĄ. Ă apenas por pura bondade que sou boa. Derrotada por mim mesma. Que me levo aos caminhos da salamandra, gĂȘnio que governa o fogo e nele vive. E dou-me como oferenda aos mortos. Faço encarnaçÔes no solstĂcio, espectro de dragĂŁo exorcizado.
Mas nĂŁo sei como captar o que acontece jĂĄ senĂŁo vivendo cada coisa que agora e jĂĄ me ocorra e nĂŁo importa o quĂȘ. Deixo o cavalo livre correr fogoso de pura alegria nobre. Eu, que corro nervosa e sĂł a realidade me delimita. E quando o dia chega ao fim ouço os grilos e torno-me toda cheia e ininteligĂvel. Depois a madrugada vem com seu bojo pleno de milhares de passarinhos barulhando. E cada coisa que me ocorra eu a vivo aqui anotando-a. Pois quero sentir nas minhas mĂŁos perquiridoras o nervo vivo e fremente do hoje.