Textos sobre Mãos de Michel de Montaigne

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Textos de mãos de Michel de Montaigne. Leia este e outros textos de Michel de Montaigne em Poetris.

Testemunhas Aparentes

Não me preocupa tanto qual eu seja para outrem como me preocupa qual eu seja em mim mesmo. Quero ser rico por mim, não por empréstimo. Os estranhos vêem apenas os acontecimentos e as aparências externas; cada qual pode ter um ar alegre exteriormente e por dentro estar cheio de febre e receio. Eles não vêem o meu coração; vêem apenas o meu comportamento. Tem-se razão em depreciar a hipocrisia que existe na guerra; pois o que é mais fácil para um homem oportunista do que esquivar-se dos perigos e fazer-se de bravo, tendo o ânimo repleto de frouxidão? Há tantos meios de evitar as ocasiões de arriscar-se pessoalmente que teremos enganado o mundo mil vezes antes de encetarmos um passo perigoso; e mesmo então, vendo-nos entravados, nesse momento bem sabemos encobrir o nosso jogo com um ar alegre e uma palavra serena, embora a alma nos trema interiormente.
E se alguém pudesse usar o anel de Platão, que tornava invisível quem o levasse no dedo e o virasse para a palma da mão, muitas pessoas amiúde se esconderiam quando mais é preciso apresentar-se e se arrependeriam de estar colocadas num lugar tão honroso, no qual a necessidade as torna seguras: Quem pode alegrar-se com falsas honrarias e temer a calúnia,

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Somos Traídos pela Nossa Própria Percepção e Experiência

Vemos muito bem que as coisas não se alojam em nós com a sua forma e essência, e não penetram em nós pela sua própria força e autoridade; porque, se assim fosse, recebê-las-íamos do mesmo modo: o vinho seria o mesmo na boca do doente e na boca do homem são. Quem tem os dedos gretados, ou que os tem entorpecidos, encontraria na lança ou na espada que maneja uma rigidez semelhante à que o outro encontra. Os objetos externos rendem-se então à nossa mercê; alojam-se em nós como nos apraz. Ora, se da nossa parte recebêssemos alguma coisa sem alteração, se as faculdades humanas fossem bastante capazes e firmes para apreender a verdade pelos nossos próprios meios, esses meios sendo comuns a todos os homens, essa verdade se transmitiria de mão em mão de um para outro. E pelo menos se encontraria uma coisa no mundo, entre tantas que há, que seria acreditada pelos homens por um consenso universal. Mas o facto de não se ver proposição alguma que não seja debatida e controversa entre nós, ou que não o possa ser, mostra bem que o nosso julgamento natural não apreende muito claramente aquilo que apreende; pois o meu julgamento não pode fazer com que isso seja aceite pelo julgamento do meu companheiro,

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Poupar a Vontade

Em comparação com o comum dos homens, poucas coisas me atingem, ou, dizendo melhor, me prendem; pois é razoável que elas atinjam, contanto que não nos possuam. Tenho grande zelo em aumentar pelo estudo e pela reflexão esse privilégio de insensibilidade, que em mim é naturalmente muito saliente. Desposo – e consequentemente me apaixono por – poucas coisas. A minha visão é clara, mas detenho-a em poucos objectos; a sensibilidade, delicada e maleável. Mas a apreensão e aplicação, tenho-a dura e surda: dificilmente me envolvo. Tanto quanto posso, emprego-me todo em mim; porém mesmo nesse objecto eu refrearia e suspenderia de bom grado a minha afeição para que ela não se entregasse por inteiro, pois é um objecto que possuo por mercê de outrém e sobre o qual a fortuna tem mais direito do que eu. De maneira que até a saúde, que tanto estimo, ser-me-ia preciso não a desejar e não me dedicar a ela tão desenfreadamente a ponto de achar insuportáveis as doenças. Devemos moderar-nos entre o ódio e o amor à voluptuosidade; e Platão receita um caminho mediano de vida entre ambos.
Mas às paixões que me distraem de mim e me prendem alhures, a essas certamente me oponho com todas as minhas forças.

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A Acção Vai Bem sem a Paixão

Fazemos coisas iguais com forças diversas e diferente esforço de vontade. A acção vai bem sem a paixão. Pois quantas pessoas se arriscam diariamente em guerras que não lhes importam, e se sujeitam aos perigos de batalhas cuja perda não lhes perturbará o próximo sono? Um homem na sua casa, longe desse perigo que não teria ousado encarar, está mais interessado no desfecho dessa guerra e tem a alma mais inquieta do que o soldado que põe nela o seu sangue e a sua vida. Essa impetuosidade e violência de desejo mais atrapalha do que auxilia a condução do que empreendemos, enche-nos de acrimónia e suspeição contra aqueles com quem tratamos. Nunca conduzimos bem a coisa pela qual somos possuídos e conduzidos.
Quem emprega nisso apenas o seu discernimento e a sua habilidade procede com mais vivacidade: amolda, dobra, difere tudo à vontade, de acordo com as exigências das circunstâncias; erra o alvo sem tormento e sem aflição, pronto e intacto para uma nova iniciativa; avança sempre com as rédeas na mão. Naquele que está embriagado por essa intensidade violenta e tirânica vemos necessariamente muita imprudência e injustiça; a impetuosidade do seu desejo arrebata-o: são movimentos temerários e, se a fortuna não ajudar muito,

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Lucidez sem Ignorância nem Sobranceria

Possivelmente não é sem razão que atribuímos à ingenuidade e ignorância a facilidade de crer e de se deixar persuadir: pois parece-me haver aprendido outrora que a crença era como uma impressão que se fazia na nossa alma; e, na medida em que esta se encontrava mais mole e com menor resistência, era mais fácil imprimir-lhe algo. Assim como, necessariamente, os pesos que nele colocamos fazem pender o prato da balança, assim a evidência arrasta a mente (Cícero). Quanto mais vazia e sem contrapeso está a alma, mais facilmente ela cede sob a carga da primeira persuasão. Eis porque as crianças, o vulgo, (…) e os doentes estão mais sujeitos a ser conduzidos pelas orelhas (ou seja, pelo que ouvem). Mas também, por outro lado, é uma tola presunção ir desdenhando e condenando como falso o que não nos parece verossímil; esse é um vício habitual nos que pensam ter algum discernimento além do comum. Outrora eu agia assim, e, se ouvia falar de espíritos que retornam, ou do prognóstico das coisas futuras, de encantamentos, de feitiçarias, ou contarem alguma outra história que eu não conseguisse compreender, vinha-me compaixão pelo pobre povo logrado por essas loucuras. Mas actualmente acho que eu próprio era no mínimo igualmente digno de pena;

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As Amizades Comuns

O que habitualmente chamamos amigos e amizades não são senão conhecimentos e familiaridades contraídos quer por alguma circunstância fortuita quer por um qualquer interesse, por meio dos quais as nossas almas se mantêm em contacto. Na amizade de que falo, as almas mesclam-se e fundem-se uma na noutra em união tão absoluta que elas apagam a sutura que as juntou, de sorte a não mais a encontrarem. Se me intimam a dizer porque o amava, sinto que só o posso exprimir respondendo: «Porque era ele; porque era eu».
(…) Não me venham meter ao mesmo nível essoutras amizades comuns! Conheço-as tão bem como qualquer outro, e até algumas das mais perfeitas do género, mas não aconselho ninguém a confundir as suas regras: laboraria num erro. Em tais amizades deve-se andar de rédeas na mão, com prudência e cautela – o nó não está atado de maneira que, acerca dele, não se tenha de nutrir alguma desconfiança. «Amai o vosso amigo», dizia Quílon, «como se algum dia tiverdes que o odiar; odiai-o como se tiverdes que o amar.»

A Hipocrisia do Ser

Para que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior, desejo de o fazer. Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença de condenação de um adultério, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho amoroso à mulher de um colega. Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma cambalhota, pouco depois e na vossa própria presença, bradará contra uma similar transgressão de uma sua amiga com mais severidade que o faria Pórcia.
E há quem condene homens à morte por crimes que nem sequer considera transgressões. Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma mão, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa reforma teológica de que o mundo, de há muito àquela parte, teve notícia.
Assim vão os homens. Deixa-se que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários.

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Julgar sem Ira

Não há paixão que tanto abale a integridade dos julgamentos quanto a cólera. Ninguém hesitaria em punir de morte o juiz que, por cólera, houvesse condenado o seu criminoso; por que será mais permitido aos pais e aos professores açoitar as crianças e castigá-las estando encolerizados? Isso já não é correcção: é vingança. O castigo faz papel de remédio para as crianças; e toleraríamos um médico que estivesse animado e encolerizado contra o seu paciente?
Nós mesmos, para agir bem, não deveríamos pôr a mão nos nossos serviçais enquanto nos perdurar a cólera. Enquanto o pulso nos bater e sentirmos emoção, adiemos o acerto; as coisas na verdade vão parecer-nos diferentes quando estivermos calmos e arrefecidos: agora é a paixão que comanda, é a paixão que fala, não somos nós. Através dela as faltas parecem-nos maiores, como os corpos no meio do nevoeiro. Quem tiver fome faça uso de alimento; mas quem quiser fazer uso do castigo não deve sentir fome nem sede dele. E, além disso, as punições que se fazem com ponderação e discernimento são muito mais bem aceites e com melhor proveito por quem as recebe. De outra forma, ele não considera que foi condenado justamente,

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O Saber como Ceptro ou como Folia

Amo e honro o saber, tanto como aqueles que o têm; dando-se-lhe o verdadeiro uso, é a mais nobre e poderosa aquisição dos homens. Mas aqueles, e são em número infinito, que nele alicerçam o seu valor e a sua fundamental capacidade, que abdicam da inteligência na memória, acolhidos à sombra alheia, e nada podem senão pelos livros – nesses aborreço-o eu, se ouso dizê-lo, um pouco mais do que a estupidez. Na minha terra e no meu tempo, a sabedoria melhora bastante as bolsas, raramente os espíritos. Se os encontra obtusos, pesa sobre eles e sufoca-os com a sua massa informe e indigesta; se lestos, logo os purifica, clarifica e subtiliza até o esgotamento. É coisa de qualidade quase indecisa; instrumento muito útil às almas bem formadas, pernicioso e daninho às outras; ou antes, coisa de preciosíssima utilidade que se não obtém barata; em certas mãos é um ceptro, noutras uma folia.

Nada nos Satisfaz

Se ocasionalmente nos ocupássemos em nos exa­minar, e o tempo que gastamos para controlar os outros e para saber das coisas que estão fora de nós o empregás­semos em nos sondar a nós mesmos, facilmente sentiríamos o quanto todo esse nosso composto é feito de peças frágeis e falhas. Acaso não é uma prova singular de imperfeição não conseguirmos assentar o nosso contentamento em coi­sa alguma, e que, mesmo por desejo e imaginação, esteja fora do nosso poder escolher o que nos é necessário? Dis­so dá bom testemunho a grande discussão que sempre houve entre os filósofos para descobrir qual é o soberano bem do homem, a qual ainda perdura e perdurará eterna­mente, sem solução e sem acordo: Enquanto nos escapa, o objecto do nosso desejo sempre nos parece preferível a qualquer outra coisa; vindo a desfrutá-lo, um outro desejo nasce em nós, e a nossa sede é sempre a mesma. (Lucrécio).
Não importa o que venhamos a conhecer e des­frutar, sentimos que não nos satisfaz, e perseguimos cobi­çosos as coisas por vir e desconhecidas, pois as presentes não nos saciam; em minha opinião, não que elas não te­nham o bastante com que nos saciar, mas é que nos apo­deramos delas com mão doentia e desregrada: Pois ele viu que os mortais têm à sua disposição praticamente tudo o que é necessário para a vida;

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