Textos sobre Pontos de Michel de Montaigne

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Textos de pontos de Michel de Montaigne. Leia este e outros textos de Michel de Montaigne em Poetris.

Poupar a Vontade

Em comparação com o comum dos homens, poucas coisas me atingem, ou, dizendo melhor, me prendem; pois é razoável que elas atinjam, contanto que não nos possuam. Tenho grande zelo em aumentar pelo estudo e pela reflexão esse privilégio de insensibilidade, que em mim é naturalmente muito saliente. Desposo – e consequentemente me apaixono por – poucas coisas. A minha visão é clara, mas detenho-a em poucos objectos; a sensibilidade, delicada e maleável. Mas a apreensão e aplicação, tenho-a dura e surda: dificilmente me envolvo. Tanto quanto posso, emprego-me todo em mim; porém mesmo nesse objecto eu refrearia e suspenderia de bom grado a minha afeição para que ela não se entregasse por inteiro, pois é um objecto que possuo por mercê de outrém e sobre o qual a fortuna tem mais direito do que eu. De maneira que até a saúde, que tanto estimo, ser-me-ia preciso não a desejar e não me dedicar a ela tão desenfreadamente a ponto de achar insuportáveis as doenças. Devemos moderar-nos entre o ódio e o amor à voluptuosidade; e Platão receita um caminho mediano de vida entre ambos.
Mas às paixões que me distraem de mim e me prendem alhures, a essas certamente me oponho com todas as minhas forças.

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A Instabilidade e Imprevisibilidade do Nosso Comportamento

Não deveis estranhar se hoje vedes poltrão aquele que ontem vistes tão intrépido: ou a cólera, ou a necessidade, ou a companhia, ou o vinho, ou o som de uma trombeta, tinham-lhe incutido coragem. Não se trata de uma coragem que a razão haja modelado; foram as circunstâncias que lhe deram consistência; não espanta, pois, que circunstâncias contrárias a tenham transformado.
Esta tão flexível variação e estas contradições que em nós se vêem, fizeram com que alguns imaginassem termos duas almas, e que outros supusessem que dois poderes nos acompanham e agitam, cada qual à sua maneira, um tendendo para o bem, o outro para o mal, já que tão brutal diversidade não poderia atribuir-se a uma só entidade.
Não somente o vento dos acidentes me agita consoante a direcção para que sopra, mas, ademais, eu agito-me e perturbo-me a mim próprio pela instabilidade da minha postura; e quem, antes do mais, se observar, nunca se achará duas vezes no mesmo estado. Confiro à minha alma ora um rosto ora outro, conforme o lado sobre que a pousar. Se falo de mim de diferentes maneiras é porque de maneiras diferentes me observo. Toda a sorte de contradições se podem encontrar em mim sob algum ponto de vista e sob alguma forma.

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Virtude Viciosa

Como se tivéssemos o tacto infectado, corrompemos com a nossa manipulação as coisas que por si mesmas são belas e boas. Podemos aprender a virtude de forma que ela se tornará viciosa, se a abraçarmos com um desejo demasiadamente ávido e violento. Os que dizem que na virtude nunca há excesso, porque já não há virtude se o excesso ali está, jogam com as palavras: O sábio deve receber o nome de insensato, o justo o de injusto se eles forem longe demais, mesmo nos seus esforços para atingir a virtude (Horácio). É uma consideração subtil da filosofia. Pode-se tanto amar demais a virtude como se comportar com excesso numa acção justa. A esse ponto de vista se ajusta a voz divina: Não sejais mais sábios do que é preciso, mas sede sobriamente sábios (São Paulo).

A Ociosidade

Assim como vemos as terras em repouso, se nédias e férteis, dar origem à proliferação de cem mil espécies de ervas selvagens e inúteis, sendo necessário, para as manter cultiváveis, domá-las e destiná-las a certas sementes por forma a que delas tiremos proveito; e assim como vemos as mulheres, que por si sós produzem informes amontoados e pedaços de carne, terem, para proporcionar uma boa e natural geração, de ser fecundadas por outra semente, assim vemos que se passa o mesmo com os nossos espíritos. Se não os ocuparmos com algum objecto que os freie e constranja, lançar-se-ão eles, desregrados, a percorrer à toa os campos bravios da imaginação:

Tal como a água que tremula em vasilhas de bronze reflecte a luz do sol ou a imagem radiante da lua, cintilações voando pelos ares e atingindo os artesoados tectos – Virgílio, Eneida

E não há loucura ou desvario que eles não produzam em tal agitação:

Inventam irreais aparições como nos sonhos dos doentes – Horácio, Ars Poetica

A alma que não tem um ponto de mira perde-se, pois, como sói dizer-se, é não estar em parte nenhuma em todo o lado estar.

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O Mal só nos Afecta na Medida em que o Deixarmos

Os homens (diz uma antiga máxima grega) são atormentados pelas ideias que têm das coisas, e não pelas próprias coisas. Haveria um grande ponto ganho para o alívio da nossa miserável condição humana se pudéssemos estabelecer essa asserção como totalmente verdadeira. Pois, se os males só entraram em nós pelo nosso julgamento, parece que está em nosso poder desprezá-los ou transformá-los em bem. Se as coisas se entregam à nossa mercê, por que não dispomos delas ou não as moldarmos para vantagem nossa? Se o que denominamos mal e tormento não é nem mal nem tormento por si mesmo, mas somente porque a nossa imaginação lhe dá essa qualidade, está em nós mudá-la. E, tendo essa escolha, se nada nos força, somos extraordinariamente loucos de bandear para o partido que nos é o mais penoso e dar às doenças, à indigência e ao desvalor um gosto acre e mau, se lhes podemos dar um gosto bom e se, a fortuna fornecendo simplesmente a matéria, cabe a nós dar-lhe a forma.
Porém vejamos se é possível sustentar que aquilo que denominamos por mal não o é em si mesmo, ou pelo menos que, seja ele qual for, depende de nós dar-lhe outro sabor e outro aspecto,

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Aprender a Morrer para Saber Viver

Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso porque de certa forma o estudo e a contemplação retiram a nossa alma para fora de nós e ocupam-na longe do corpo, o que é um certo aprendizado e representação da morte; ou então porque toda a sabedoria e discernimento do mundo se resolvem por fim no ponto de nos ensinarem a não termos medo de morrer. Na verdade, ou a razão se abstém ou ela deve visar apenas o nosso contentamento, e todo o seu trabalho deve ter como objectivo, em suma, fazer-nos viver bem e ao nosso gosto, como dizem as Santas Escrituras. Todas as opiniões do mundo coincidem em que o prazer é a nossa meta, embora adoptem meios diferentes para isso; de outra forma as rejeitaríamos logo de início, pois quem escutaria alguém que estabelecesse como fim o nosso penar e descontentamento?

Um Único Estilo de Vida não é Viver, é Ser

Não nos devemos apegar assim tão fortemente às nossas tendências e temperamento. O nosso talento principal é sabermos aplicar-nos a práticas diversas. O estar vinculado, e necessariamente obrigado, a um único estilo de vida não é viver, é ser. As almas mais belas são as que têm mais variedade e flexibilidade.
Se me fosse possível constituir-me a meu modo, não haveria nenhuma forma, por melhor que fosse, na qual eu me quisesse fixar de sorte que não fosse capaz de dela me apartar. A vida é um movimento desigual, irregular e multiforme. Não é ser amigo, e muito menos senhor, de si mesmo, deixar-se incessantemente conduzir por si e estar preso às próprias inclinações que não possa desviar-se delas nem torcê-las – é ser escravo de si próprio.
Digo-o neste momento por não me poder facilmente desembaraçar da importunidade da minha alma que consiste em ela normalmente não saber ocupar-se senão do que a absorve, nem aplicar-se senão por inteiro e de forma tensa. Por mais trivial que seja o assunto que se lhe dê, ela logo o aumenta e estica a ponto de ter de se empenhar nele com todas as forças. A sua ociosidade é-me, por esta causa,

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O Vício da Glória

De todas as tolices do mundo, a mais aceite e mais universal é a preocupação com a reputação e a glória, que desposamos a ponto de deixar de lado as riquezas, o descanso, a vida e a saúde, que são bens reais e substanciais, para seguirmos essa vã imagem e essa simples palavra que não tem corpo nem pregnância: A fama, que encanta com a sua doce voz os mortais soberbos e que parece tão bela, é apenas um eco, um sonho, ou antes a sombra de um sonho, que ao menor sopro se dissipa e desvanece (Torquato Tasso). E, das veleidades desarrazoadas dos homens, parece que mesmo os filósofos se desfazem desta mais tarde e mais a contragosto que de qualquer outra.
É a mais pertinente e pertinaz: Pois não cessa de tentar até mesmo aqueles que progrediram no caminho da vitude (Santo Agostinho). Quase não há outra cuja vacuidade a razão aponte tão claramente; mas ela tem dentro de nós raízes tão vivas que não sei se alguém jamais conseguiu libertar-se totalmente. Depois que tudo dissestes e em tudo acreditastes para renegá-la, ela produz contra o vosso raciocínio uma inclinação tão intestina que mal tendes com que lhe resistir.

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