Textos sobre Paisagem de Fernando Pessoa

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Textos de paisagem de Fernando Pessoa. Leia este e outros textos de Fernando Pessoa em Poetris.

Toda a Sociedade Está dentro de Mim

Fazer qualquer coisa ao contrário do que todos fazem é quase tão mau como fazer qualquer coisa porque todos a fazem. Mostra uma igual preocupação com os outros, uma igual consulta da opinião deles – característica certa da inferioridade absoluta. Abomino por isso a gente como Oscar Wilde e outros que se preocupam com seres imorais ou infames, e com o impingir paradoxos e opiniões delirantes. Nenhum homem superior desce até dar à opinião alheia tal importância que se preocupe em contradizê-la.
Para o homem superior não há outros. Ele é o outro de si próprio. Se quer imitar alguém, é a si próprio que procura imitar. Se quer contradizer alguém, é a si mesmo que busca contradizer. Procura ferir-se, a si próprio, no que de mais íntimo tem… faz partidas às suas próprias opiniões, tem longas conversas cheias de desprezo e com as sensações que sente. Todo o homem que há sou Eu. Toda a sociedade está dentro de mim. Eu sou os meus melhores amigos e os meus verdadeiros inimigos. O resto – o que está lá fora – desde as planícies e os montes até às gentes – tudo isso não é senão paisagem…

Se Fosse Alguma Coisa, Não Poderia Imaginar

Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distracção. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu.
Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu.

Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis do Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis do Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de possível ?
(…) Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de o ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.

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Do Contraditório como Terapêutica de Libertação

Recentemente, entre a poeira de algumas campanhas políticas, tomou de novo relevo aquele grosseiro hábito de polemista que consiste em levar a mal a uma criatura que ela mude de partido, uma ou mais vezes, ou que se contradiga, frequentemente. A gente inferior que usa opiniões continua a empregar esse argumento como se ele fosse depreciativo. Talvez não seja tarde para estabelecer, sobre tão delicado assunto do trato intelectual, a verdadeira atitude científica.
Se há facto estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentado sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo próprio. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. Como então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando não só o cérebro de hoje já não é o de ontem, mas nem sequer o dia de hoje é o de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.
A coerência, a convicção, a certeza são além disso, demonstrações evidentes — quantas vezes escusadas — de falta de educação.

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O Provincianismo Português (II)

Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria “provincianismo”. Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa. Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental — a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás,

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Alma e Realidade, Duas Paisagens Sobrepostas

1 – Em todo o momento de actividade mental acontece em nós um duplo fenómeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência de um estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
2 – Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E – mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem – pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”, ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3 – Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem,

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