Textos sobre Profundos de Miguel Torga

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Textos de profundos de Miguel Torga. Leia este e outros textos de Miguel Torga em Poetris.

Cada Homem Só se Pode Salvar ou Perder Sozinho

Também eu acredito que a existência precede a essência. Que tudo começa quando o coração pulsa pela primeira vez, e tudo acaba quando ele desiste de lutar. Que todas as paisagens são cenários do nosso drama pessoal, comentários decorativos da nossa aventura íntima e profunda. E que, por isso, cada homem só se pode salvar ou perder sozinho, e que só ele é o responsável pelos seus passos, que só as suas próprias raízes são raízes, e que está nas suas mãos a grandeza ou a pequenez do seu destino. Companheiro doutros homens, será belo tudo quanto de acordo com o semelhante fizer, todas as suas fraternidades necessárias e louváveis. Mas que será do tamanho e da qualidade da sua realização singular, da força da sua unidade, da posição que escolheu e da obra que realizou, que a consciência lhe perguntará dia a dia, minuto a minuto.

Vivemos numa Paz de Animais Domésticos

Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha.
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razão acode, e o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem e o soro que neutraliza a mordedura de cada um. Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que não devemos comer e as feras que nos não podem devorar. Vivemos numa paz de animais domésticos, vacinados, com os dentes caninos a trincar pastéis de nata, tendo aos pés, submissos, os antigos pesadelos da nossa ignorância. Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoológicos e botânicos ver, pacata e sàbiamente, em jaulas e canteiros, o que já foi perigo e mistério. E, por mais que nos custe, não conseguimos captar a alma do brinquedo esventrado. O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que era bravo,

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Uma Fraqueza de Eterna Disponibilidade

O perfil da nossa personalidade profunda, que é inconfundível, que é verdadeiro, não tem, por variadas razões, a nitidez de contornos de que se podem gabar homens doutros meridianos. Um espanhol, um francês, um alemão, um inglês, são incompreensíveis fora das suas raias. Um português, apesar das fortes raízes nacionais que o individualizam, entende-se perfeitamente longe de Portugal. Há nele uma fraqueza de eterna disponibilidade, de pronta e conciliante aceitação do que se lhe opõe, de amável adaptação ao meio hostil, que o fazem capaz em todo o mundo, mas incapaz no seu mundo. Daí não ter possivelmente grandes coisas para exprimir, a não ser o lirismo de ser assim. Infelizmente, não é por intermédio dos seus poetas líricos que um povo pode comunicar com os outros.