Liberdade e Eternidade
A liberdade que Ă s vezes sentia nĂŁo vinha de reflexões nĂtidas, mas de um estado como feito de percepções por demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos. Ă€s vezes no fundo da sensação tremulava uma ideia que lhe dava leve consciĂŞncia de sua espĂ©cie e de sua cor.
O estado para onde deslizava quando murmurava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteúdo e uma forma, mas sem dimensões também. A impressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facilmente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizadamente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstracto. Sobretudo dava ideia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.
Definia eternidade e as explicações nasciam fatais como as pancadas do coração. Delas não mudaria um termo sequer,
Textos sobre Sentimentos de Clarice Lispector
6 resultadosPerguntas e Respostas
— Qual é a coisa mais antiga do mundo?
— Poderia dizer que é Deus que sempre existiu.
— Qual é a coisa mais bela?
— O instante de inspiração.
— E Deus quando criou o Universo não o fez no momento de Sua maior inspiração?
— O Universo sempre existiu. O cosmos é Deus.
— Qual das coisas é a maior?
— O amor, que é o maior dos mistérios.
— Das coisas qual é a mais constante?
— O medo. Que pena que eu não possa responder: é a esperança.
— Qual o melhor dos sentimentos?
— O de amar e ao mesmo tempo ser amada, o que parece apenas um lugar-comum mas é uma de minhas verdades.
— Qual é o sentimento mais rápido?
— O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.
— Qual é a mais forte das coisas?
— O instinto de ser.
— O que é mais fácil de se fazer?
— Existir,
O Medo de Viver
Como contacto praticamente permanente com a lógica surgiu-me um sentimento que nunca antes eu experimentara: o medo de viver, o medo de respirar. Com urgência preciso lutar porque esse medo me amarra mais do que o medo da morte, é um crime contra mim mesmo. Estou com saudade de meu anterior clima de aventura e minha estimulante inquietação. Acho que ainda não caà na monotonia de viver.
Como Escrever
Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpĂ´-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me Ă© uma necessidade. De um lado, porque escrever Ă© um modo de nĂŁo mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação Ă© apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser atravĂ©s do processo de escrever. Se tomo um ar hermĂ©tico, Ă© que nĂŁo sĂł o principal Ă© nĂŁo mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpĂ´-lo de um modo claro sem que o minta — mentir o pensamento seria tirar a Ăşnica alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermĂ©tico, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas Ă© que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistĂ©rio natural, nĂŁo substituĂvel por clareza outra nenhuma. E tambĂ©m porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo de água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que vive.
A Palavra Secreta
Meu Deus do cĂ©u, nĂŁo tenho nada a dizer. O som de minha máquina Ă© macio. Que Ă© que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra Ă© o meu meio de comunicação. Eu sĂł poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra Ă© tĂŁo forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra Ă© uma idĂ©ia. Cada palavra materializa o espĂrito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo – é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade.
A Vida OblĂqua
SĂł agora pressenti o oblĂquo da vida. Antes sĂł via atravĂ©s de cortes retos e paralelos. NĂŁo percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida Ă© outra. Que viver nĂŁo Ă© sĂł desenrolar sentimentos grossos — Ă© algo mais sortilĂ©gico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existĂŞncia feneça no que tem de oblĂquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e nĂŁo existe nisso contradição.
A vida oblĂqua Ă© muito Ăntima. NĂŁo digo mais sobre essa intimidade para nĂŁo ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblĂquo na sua independĂŞncia desenvolta.
E conheço tambĂ©m um modo de vida que Ă© suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contĂnua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excĂŞntrica. Tem um lado da vida que Ă© como no inverno tomar cafĂ© num terraço dentro da friagem e aconchegada na lĂŁ.
Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante,