Textos sobre Simples de Miguel Torga

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Textos de simples de Miguel Torga. Leia este e outros textos de Miguel Torga em Poetris.

Como é Difícil Ser Natural

É curioso como é difícil ser natural. Como a gente está sempre pronta a vestir a casaca das ideias, sem a humildade de se mostrar em camisa, na intimidade simples e humana da estupidez ou mesmo da indiferença. Fiz agora um grande esforço para dizer coisas brilhantes da guerra futura, da harmonia dos povos, da próxima crise. E, afinal de contas, era em camisa que eu devia continuar quando a visita chegou. No fundo, não disse nada de novo, não fiquei mais do que sou, não mudei o curso da vida. Fui apenas ridículo. Se não aos olhos do interlocutor, que disse no fim que gostou muito de me ouvir, pelo menos aos meus, o que ainda é mais penoso e mais trágico.

É Preciso Regressar ao Amigo Íntimo

Custa, mas o melhor é ver o problema a toda a luz. No conceito do homem abstracto é necessário afinal meter tanto estrume, que não há entusiasmo que resista. Feito de mil incoerências, movido por sentimentos ocasionais, preso a necessidades rudimentares, o bípede real, ao ser premido no molde da abstracção, rebenta a forma. E é preciso regressar ao amigo íntimo, ao compadre, para se calcar terra firme. Numa palavra: não há um homem-símbolo que se possa venerar: há simples indivíduos cujas virtudes e defeitos toleram um convívio social urbano.

Os Homens sem Pé no seu Tempo

Das coisas tristes que o mundo tem, são os homens sem pé no seu tempo. Os desgraçados que aparecem assim, cedo de mais ou tarde de mais, lembram-me na vida terras de ninguém, onde não há paz possível. Imagine-se a dramática situação dum cavernícola transportado aos dias de hoje, ou vice-versa. A cada época corresponde um certo tipo humano. Um tipo humano intransponível, feito da unidade possível em tal ocasião, moldado psicològicamente, e fisiològicamente até, pelas forças que o rodeiam. A Idade Média tinha como valores Aristóteles e os doutores da Igreja. E qualquer espírito coevo, por mais alto que fosse, estava irremediàvelmente emparedado entre a Grécia sem Platão e as colunas do Templo. De nada lhe valia sonhar outro espaço de movimento. Cada inquietação realizava-se ali. O que seria, pois, um Vinci do Renascimento, multímodo, aberto a todos os conhecimentos, a bracejar dentro de tão acanhados muros?

Neste trágico século vinte, sem qualquer sério conteúdo ideológico, sem nenhuma espécie de grandeza fora do visceral e do somático, todo feito de records orgânicos e de conquistas dimensionais, que serenidade interior poderá ter alguém alicerçado em valores religiosos, estéticos, morais, ou outros? Nenhuma. Entre o abismo da sua impossibilidade natural de deixar de ser o que é,

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Humanidade às Cegas

Tanto jornal, tanta rádio, tanta agência de informações, e nunca a humanidade viveu tão às cegas. Cada hora que passa é um enigma camuflado por mil explicações. A verdade, agora, é uma espécie de sombra da mentira. E como qualquer de nós procura quase sempre apenas o concreto, cada coisa que toca deixa-lhe nas mãos o simples negativo da sua realidade.

O Que Liga os Homens na Vida

O que mais estreitamente liga os homens na vida não são forças puras e generosas. Se assim fosse, não se teria queimado nem ofendido tanta gente superior que andou no mundo. O óptimo moral e intelectual da humanidade é um compromisso entre o bom e o mau, entre o limpo e o sujo, entre a Quaresma e o Carnaval. Por isso, quem traz uma chama limpa a alumiá-lo, e teima em segui-la, não pode ser entendido nem tolerado por aqueles que ou não precisam de luz, como as toupeiras, ou se remedeiam com um simples morrão de candeia.
É certo que os calendários civis e religiosos apenas perpetuam heróis e santos. Mas, olhando bem, vê-se que é sempre a mesma história. Queima-se ou crucifica-se primeiro o herói ou o santo, joga-se aos dados a sua túnica, e, quando dele não resta nem a sombra das cinzas, aparece um centurião qualquer a dizer: «Verdadeiramente este homem era filho de Deus».