Textos sobre Sistema de Fernando Pessoa

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Textos de sistema de Fernando Pessoa. Leia este e outros textos de Fernando Pessoa em Poetris.

Manufacturamos Realidades

Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.
Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro.
Manufacturamos realidades. A matéria-prima continua a ser a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. Um amor é um instinto sexual, porém não amamos com o instinto sexual, mas com a pressuposição de outro sentimento. E essa pressuposição é,

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A Sociedade é um Sistema de Egoísmos Maleáveis

A sociedade é um sistema de egoísmos maleáveis, de concorrências intermitentes. Como homem é, ao mesmo tempo, um ente individual e um ente social. Como indivíduo, distingue-se de todos os outros homens; e, porque se distingue, opõe-se-lhes. Como sociável, parece-se com todos os outros homens; e, porque se parece, agrega-se-lhes. A vida social do homem divide-se, pois, em duas partes: uma parte individual, em que é concorrente dos outros, e tem que estar na defensiva e na ofensiva perante eles; e uma parte social, em que é semelhante dos outros, e tem tão-somente que ser-lhes útil e agradável. Para estar na defensiva ou na ofensiva, tem ele que ver claramente o que os outros realmente são e o que realmente fazem, e não o que deveriam ser ou o que seria bom que fizessem. Para lhes ser útil ou agradável, tem que consultar simplesmente a sua mera natureza de homens.
A exacerbação, em qualquer homem, de um ou o outro destes elementos leva à ruína integral desse homem, e, portanto, à própria frustração do intuito do elemento predominante, que, como é parte do homem, cai com a queda dele. Um indivíduo que conduza a sua vida em linhas de uma moral altíssima e pura acabará por ser ultrajado por toda a gente –

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Procurei a Verdade Ardentemente

A nossa ânsia de verdade é grande, e por certo o que quiséramos fora, não esta doutrina do Limiar, senão a casa e o lar que há nele.
De aí a arte, feita para entretimento dos outros e nossa ocupação, dos que somos ocupáveis desse modo. Negada a verdade, não temos com que entreter-nos senão a mentira. Com ela nos entretenhamos, dando-a porém como tal, que não como verdade; se uma hipótese metafísica nos ocorre, façamos com ela, não a mentira de um sistema (onde possa ser verdade) mas a verdade de um poema ou de uma novela – verdade em saber que é mentira, e assim não mentir. (…) e assim construí para mim esta regra de vida.
Procurei a verdade ardentemente, ora com uma atenção (…)

Plano de Vida

Um plano geral para a vida deve implicar, antes de mais, alcançar-se qualquer forma de estabilidade financeira. Marquei como limite para essa coisa humilde a que chamo estabilidade financeira cerca de sessenta dólares—quarenta para o necessário, e vinte para as coisas supérfluas da vida. A forma de o alcançar é adicionar aos trinta e um dólares dos dois escritórios (P & FF) vinte e nove dólares de proveniência a determinar. Em rigor, para viver apenas, cinquenta dólares bastariam, pois, tomando trinta e cinco como base necessária, quinze já davam para o resto.

A coisa essencial que vem logo a seguir é residir numa casa com bastante espaço, espaço quanto a divisões e divisões com os requisitos necessários, para arrumar todos os meus papéis e livros na devida ordem; e tudo isto sem grande possibilidade de me mudar dentro de pouco tempo. Parece que o mais fácil seria alugar eu próprio uma casa — à base de, suponhamos, oito ou, quando muito, nove dólares — e viver lá à vontade, combinando que me levassem o jantar (e o pequeno-almoço) todos os dias, ou coisa parecida. Mas seria este sistema absolutamente conveniente?

Substituir, no tocante à ordem dos papéis,

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Conceitos de Perfeição

Nasce o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideais possíveis, quantos forem os modos por que é possível ter a vida por imperfeita. A cada modo de a ter por imperfeita corresponderá, por contraste e semelhança, um conceito de perfeição. É a esse conceito de perfeição que se dá o nome de ideal.
Por muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por imperfeita, elas são, fundamentalmente, apenas três. Com efeito, há só três conceitos possíveis de imperfeição, e, portanto, da perfeição que se lhe opõe.

Podemos ter qualquer coisa por imperfeita simplesmente por ela ser imperfeita; é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado. Podemos, por contra, tê-la por imperfeita porque a imperfeição resida, não na realização, senão na essência. Será quantitativa ou qualitativa a diferença entre a essência dessa coisa imperfeita e a essência do que consideramos perfeição; quantitativa como se disséssemos da noite, comparando-a ao dia, que é imperfeita porque é menos clara; qualitativa como se, no mesmo caso, disséssemos que a noite é imperfeita porque é o contrário do dia.
Pelo primeiro destes critérios, aplicando-o ao conjunto da vida,

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Catolicismo e Comunismo

Ao contrário do catolicismo, o comunismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele a tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema — o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.
O comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental — isto é de civilização e de cultura —, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.

A Doença da Disciplina

Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que cousa nenhuma, por boa que seja — e eu não creio que a disciplina seja boa — por força que há-de ser prejudicial.
Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército de que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por um milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica.
Parecemo-nos muito com os alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem.
Por isso aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco.

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