Carta
(digo dos que se ditam:
a minha defesa
sĂŁo os vossos punhais)Quando me disseram «nĂŁo se vem Ă vida para sonhar» passei a odiar-vos. Para vos matar escolhi materiais inacessĂveis ao meu Ăłdio. Em mim fizestes despertar a irreparĂĄvel urgĂȘncia de ferir.
Descobri a vossa intenção: decepar as minhas raĂzes mais profundas, obrigar-me Ă cerimĂłnia das palavras mortas. Preferi reiniciar-me: na solidĂŁo me apaguei. Estava sĂł para me encher de gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente olhar de frente a verdade das pequenas coisas: esta ĂĄgua vem de onde, quem teceu este linho, que mĂŁos fizeram este pĂŁo?
Desloquei-me para tudo ver de um outro lado: levei o meu olhar, o desejo de um princĂpio infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas vozes que me habitavam silenciosamente. Entre mar e terra eu preferia ser espuma, ter raiz e poente entre oceano e continente.
O tempo, por vezes, morria de o nĂŁo semear. Terras que golpeava com ternura eram feridas que em mim se abriam para me curar. Eram terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes eram mĂŁos de um corpo que ainda me nĂŁo nascera. Surgiam da obscuridade para afastar a ĂĄgua e nela me deixar tombar.
Textos sobre Terra de Mia Couto
2 resultadosA ViolĂȘncia Oculta
A primeira razĂŁo por que a violĂȘncia maior actua de modo silencioso, e das poucas vezes que falamos dela falamos apenas da ponta do icebergue. NĂłs acreditamos que estamos perante fenĂłmenos de violĂȘncia apenas quando essa tensĂŁo assume proporçÔes visĂveis, quando ela surge como espectĂĄculo mediĂĄtico. Mas esquecemos que existem formas de violĂȘncia oculta que sĂŁo gravĂssimas. Esquecemos, por exemplo, que todos os dias, no nosso paĂs, sĂŁo sexualmente violentadas crianças. E que, na maior parte das vezes, os agressores nĂŁo sĂŁo estranhos. Quem viola essas crianças sĂŁo principalmente parentes. Quem pratica esse crime Ă© gente da prĂłpria casa.
NĂłs temos nĂveis altĂssimos de violĂȘncia domĂ©stica, em particular, de violĂȘncia contra a mulher. Mas esse assunto parece ser preocupação de poucos. Fala-se disso em algumas ONGs, em alguns seminĂĄrios. A Lei contra a violĂȘncia domĂ©stica ainda nĂŁo foi aprovada na Assembleia da RepĂșblica.
Existem vĂĄrias outras formas invisĂveis de violĂȘncia. Existe violĂȘncia quando os camponeses sĂŁo expulsos sumariamente das suas terras por gente poderosa e nĂŁo possuem meios para defender os seus direitos. Existe uma violĂȘncia contida quando, perante o agente corrupto da autoridade, nĂŁo nos surge outra saĂda senĂŁo o suborno. Existe, enfim, a violĂȘncia terrĂvel que Ă© o vivermos com medo.