Há tipos que só conhecem a morte por ouvirem dizer. São exactamente os mesmos que só por ouvirem dizer conhecem também a vida.
Passagens de Vergílio Ferreira
496 resultadosA Solidão do Artista
Diz-se às vezes de certas pessoas, e para isso se reprovar, que têm dupla personalidade. Mas dupla ou múltipla têm-na normalmente os artistas. Ela é pelo menos a do convívio exterior e a do seu intimismo. Se trazem esta para a rua, são quase sempre insuportáveis. Só se suporta o que é de um profundo interesse, quando isso é rentável. Imagino que o capitalista tenha na sua vida íntima um mundo de cifrões. Se o cifrão vier à rua, tem ainda cotação. Mas o artista? Mesmo a coisa minúscula da sua pequena vaidade é irritante. Um político pode blasonar pimponice, que tem adeptos a aplaudir. O artista é um condenado, com o ferrete da ignomínia. O seu dever social é ocultar a degradação ou então marginalizar-se. Para efeitos cívicos ou mundanos, só depois de bem morto. A solidão é assim o seu destino. Aí sofre ou tem alegrias, aí obedece a um estranho mandato que lhe passaram na eternidade. Discreto, envergonhado, todo o seu esforço, no domínio das relações, é esconder a sua mancha. Nenhum povo existe senão pelo seu espírito. Somos o que somos pelo que foi excepção dos que nos precederam. Mas o dia a dia não é espiritual,
O que numa obra lê a sua época, nem sempre é o que lêem as épocas que se seguem. Daí que uma obra célebre á nascença não se saiba o que virá a ser depois.
Qual o verdadeiro sentido de um romance ou de um poema? Se se pudesse realmente dizer, o poema ou o romance possivelmente não existiam.
O prazer que nos dá uma ideia de outrem com que concordamos, vem-nos da ilusão de que fomos nós que a inventámos. Até porque fomos. Mas só agora o soubemos.
O melhor de uma verdade é o que dela nunca se chega a saber.
Há em nós um segredo que nós mesmos não sabemos. Mas é bom isso. Porque sabê-lo era decerto perder a alma.
O que em mim pensa está sentindo.
Não queiras saber tudo. Deixa um espaço livre para te saberes a ti.
A força de um problema tem que ver com a força de que dispomos.
A Divinização do Utilitário
O grande conflito de hoje, no domínio socioeconómico, por exemplo, e contra a previsão de um Marx, não é o que opõe o Capital e o Trabalho, mas o que comanda a máquina e o que a serve (François Perroux). Mas o efeito mais visível, porque mais extenso, da sua compacta presença, é o que degrada os sonhos ao tangível e utilitário que define a vituperada «sociedade de consumo». Não é assim o útil ou utilitário que se condena: é a sua divinização. O que surpreende no mundo de hoje não é a sedução da comodidade, mas que ela esgote todas as seduções; não é o sonho de «viver bem», mas que só se viva bem com esse sonho. Decerto o viver bem foi sempre um sonho de quem teve por sorte o viver mal. Mas a realização em massa dessa ambição instaura-se em plena força como modelo. E não apenas por ser uma realização em massa, mas porque aos «responsáveis» nenhum valor se impõe para a esse imporem. O utilitarismo é um valor negativo; mas converte-se em positivo pela negatividade de quem poderia recusá-lo. O que nos «irresponsáveis» é uma ambição em positivo, é nos «responsáveis» uma aceitação em negativo,
A verdade é muitas vezes um produto artificial da autoridade ou persistência. Um velho tem mais probabilidades de a estabelecer do que um novo. E um teimoso também.
Não Confundir Amizade (ou Amor) com Interesse
Não confundir amizade (ou amor) com «interesse». É uma máxima canónica. Pois. Mas que amizade (ou amor) não assenta no interesse dela? Porque é o interesse que cria condições não apenas para o interesseirismo mas para a própria amizade. Só nos interessa a amizade de quem nos interessa… Os meus hábitos de vida exigem para as relações o que entre de algum modo nesse hábitos. Nem tem sentido gostar-se de alguém por si mesmo. O «si» mesmo é todo o espaço em que se manifesta. O meu único espaço habitável para os outros é o que lhes invento em alguns livros. No resto vivo só eu.
Tudo se pode aprender, excepto a morte. Porque só se aprende o que já está em nós. E a morte não está.
O respeito pela liberdade do espectador só tem igual no respeito do autor por si próprio. Porque é por respeito por si próprio que ele não se comove nem se ri, a não ser pelo que sobra ou é um excedente da sua vontade de rir e de se comover. É da sua estabilidade ou «indiferença» que transborda o que há-de comover ou fazer rir os outros.
Numa epidemia a morte é desvalorizada. Porque se não desvaloriza no nosso quotidiano, que é como se houvesse também uma epidemia, embora ao retardador?
Há duas formas de se ser monstruoso. Uma é a da absoluta perfeição.
Erguer-me de sob a montanha de tudo quanto o meu tempo acumulou e descobrir a virgindade do sentir. É a primeira relação com os outros e com o mundo, antes de a razão a engaiolar.
Como em jogo de cabra-cega, em que há seres à nossa volta, a pergunta orienta-se entre os que lhe não pertencem até achar o que procura.
Não perguntes a uma verdade se ela é verdadeira. Pergunta a que clube pertence.