Há sempre uma razão, embora não haja nenhuma explicação.
Passagens de Adélia Prado
69 resultadosAntes do Nome
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
A Casa
É um chalé com alpendre,
forrado de hera.
Na sala,
tem uma gravura de Natal com neve.
Não tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem.
Mas afirmo que tem janelas,
claridade de lâmpada atravessando o vidro,
um noivo que ronda a casa
— esta que parece sombria —
e uma noiva lá dentro que sou eu.
É uma casa de esquina, indestrutível.
Moro nela quando lembro,
quando quero acendo o fogo,
as torneiras jorram,
eu fico esperando o noivo, na minha casa aquecida.
Não fica em bairro esta casa
infensa à demolição.
Fica num modo tristonho de certos entardeceres,
quando o que um corpo deseja é outro corpo pra escavar.
Uma ideia de exílio e túnel.
Aqui se passa fome, aqui se odeia, aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.
Um corpo quer outro corpo, uma alma quer outra alma e seu corpo. Este excesso de realidade me confunde.
Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.
Uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo.
Sofro por causa do meu espírito de colecionador-arqueólogo. Quero pôr o bonito numa caixa com chave para abrir de vez em quando e olhar.
Amor pra mim é ser capaz de permitir que aquele que eu amo exista como tal, como ele mesmo. Isso é o mais pleno amor. Dar a liberdade dele existir ao meu lado do jeito que ele é.
Estremecerei de susto até dormir, e no entanto é tudo tão pequeno. Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota.
Deus de vez em quando me tira a poesia e eu olho pedras e vejo pedras mesmo…
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.
Não quero faca, nem queijo. Quero a fome.
Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Se pudesse, hoje, varria, isso mesmo, varria as pessoas todas com vassoura, como se fossem ciscos.
Eu ponho o amor no pilão com cinza e grão de roxo e soco. Macero ele, faço dele cataplasma e ponho sobre a ferida.
O que a memória ama, fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Me consola, moço. Fala uma frase, feita com o meu nome, Para que ardam os crisântemos E eu tenha um feliz Natal!
Tudo que a memória amou já ficou eterno
Ama e nem sabe mais o que ama.