Nossas alucinações são alegorias da realidade.
Passagens de Carlos Drummond de Andrade
1088 resultadosO Inseguro
A eterna canção: Que fiz durante o ano, que deixei de fazer, por que perdi tanto tempo cuidando de aproveitá-lo? Ah, se eu tivesse sido menos apressado! Se parasse meia hora por dia para não fazer absolutamente nada — quer dizer, para sentir que não estava fazendo coisas de programa, sem cor nem sabor. Aí, a fantasia galopava, e eu me reencontraria como gostava de ser; como seria, se eu me deixasse…
Não culpo os outros. Os outros fazem comigo o que eu consinto que eles façam, dispersando-me. Aquilo que eu lhes peço para fazerem: não me deixarem ser eu-um. Nem foi preciso rogar-lhes de boca. Adivinharam. Claro que eu queria é sair com eles por aí, fugindo de mim como se foge de um chato. Mas não foi essa a dissipação maior. No trabalho é que me perdi completamente de mim, tornando-me meu próprio computador. Sem deixar faixa livre para nenhum ato gratuito. Na programação implacável, só omiti um dado: a vida.Que sentimento tive da vida, este ano? Que escavação tentei em suas jazidas? A que profundidade cheguei? Substituí a noção de profundidade pela de altura. Não quis saber de minerações. Cravei os olhos no espaço,
Os feriados dão oportunidade a que os patriotas deixem de se preocupar com a pátria.
As palavras fogem quando precisamos delas e sobram quando não pretendemos usá-las.
O país excessivamente grande perde a noção de grandeza e resigna-se a ser dirigido por homens pequenos.
Os condenados à vida aprovam ou repelem a pena de morte, conforme o temperamento.
Esse minúsculo ponto do sexo feminino, em torno do qual gira a máquina do mundo.
Mantemos reserva para com o desconhecido, esquecendo que não nos conhecemos a nós mesmos.
São tantos órgãos a defender a cultura que ela acaba esmagada pela massa de defensores.
Condenamos a crueldade alheia sem indagar se, em situação idêntica, não faríamos a mesma coisa.
A beleza, dom dos deuses, é breve, porque os deuses logo o confiscam.
Quanto mais aprendo, menos vivo.
Ninguém está preparado para morrer, mas isto não faz diferença; morre-se assim mesmo.
O pênis, caçador que às vezes nega fogo diante da caça.
A língua do enforcado continua falando coisas que não entendemos.
A história recente ainda não é História, porque a presenciamos, e a antiga também não, porque não a testemunhamos.
A chuva é igualmente responsável por gripes e poemas lacrimejantes.
Dois Rumos
Mentir, eis o problema:
minto de vez em quando
ou sempre, por sistema?Se mentir todo dia,
erguerei um castelo
em alta serraniacontra toda escalada,
e mais ninguém no mundo
me atira seta ervada?Livre estarei, e dentro
de mim outra verdade
rebrilhará no centro?Ou mentirei apenas
no varejo da vida,
sem alívio de penas,sem suporte e armadura
ante o império dos grandes,
frágil, frágil criatura?Pensarei ainda nisto.
Por enquanto não sei
se me exponho ou resisto,se componho um casulo
e nele me agasalho,
tornando o resto nulo,ou adiro à suposta
verdade contingente
que, de verdade, mente.
Perdoar antes é melhor do que perdoar depois.
O mau cheiro é um perfume falsificado que faz questão de aparecer como autêntico.