Se ensinares, ensina ao mesmo tempo a duvidar daquilo que estás a ensinar.
Passagens de José Ortega y Gasset
84 resultadosDisponibilidade Vazia
O cigano foi-se confessar; mas o padre, precavido, começou por interrogá-lo sobre os mandamentos de Deus. Ao que o cigano respondeu: «Olhe, senhor padre, eu ia aprender isso, mas depois ouvi um zum-zum de que tinha perdido o valor». (…) Todo o mundo – nações, indivíduos – está desmoralizado. Durante uma temporada, esta desmoralização diverte e até vagamente ilude. Os inferiores pensam que lhes tiraram um peso de cima. Os decálogos conservam do tempo em que eram inscritos sobre pedra ou bronze oseu carácter de pesadume. A etimologia de mandar significa carregar, pôr em alguém algo nas mãos. Quem manda é, sem remissão, quem tem o encargo. Os inferiores do mundo inteiro já estão fartos de que os encarreguem e sobrecarreguem, e aproveitam com ar festivo este tempo de pesados imperativos. Mas a festa dura pouco. Sem mandamentos que nos obriguem a viver de um certo modo, fica a nossa vida em pura disponibilidade. Esta é a horrível situação íntima em que se encontram já as melhores juventudes do mundo. De puro sentir-se livres, isentas de entraves, sentem-se vazias. Uma vida em disponibilidade é maior negação que a morte. Porque viver é ter que fazer algo determinado – é cumprir um encargo –,
A Vida é Absoluta Convicção
A vida é primariamente encontrar-se, cada qual, submergido entre as coisas, e enquanto é apenas isso consiste em sentir-se absolutamente perdido. A vida é perdição. Mas por isso mesmo obriga, quer queiramos quer não, a um esforço para se orientar no caos, para se salvar dessa perdição. Este esforço é o conhecimento que extrai do caos um esquema de ordem, um cosmos. Este esquema do universo é o sistema das nossas ideias ou convicções vigentes. Quer queiramos quer não, vivemos com convicções e de convicções. O mais teoreticamente céptico existe apoiando-se num suporte de crenças sobre o que as coisas são. A vida é absoluta convicção. A dúvida intelectual mais extrema é vitalmente uma absoluta convicção de que tudo é duvidoso. E algo ou tudo ser duvidoso não é uma crença num ser menor do que qualquer outra de aspecto mais positivo.
O Tabu e a Metáfora
A metáfora é provavelmente a potência mais fértil que o homem possui. A sua eficiência chega a raiar os confins da taumaturgia e parece uma ferramenta de criação que Deus deixou esquecida dentro de uma das suas criaturas na ocasião em que a formou, como o cirurgião distraído deixa um instrumento no ventre do operado.
Todas as demais potências nos mantêm inscritos no interior do real, do que já é. O mais que podemos fazer é somar ou subtrair as coisas entre si. Só a metáfora nos facilita a evasão e cria entre as coisas reais recifes imaginários, floração de leves ilhas.
É verdadeiramente estranha a existência no homem desta actividade mental que consiste em substituir uma coisa por outra, não tanto no esforço de chegar à segunda como no intento de esquivar a primeira. A metáfora escamoteia um objecto mascarando-o por meio de outro, e não teria sentido se não víssemos nela um instinto que induz o homem a evitar as realidades.
Ao interrogar-se sobre qual poderia ser a origem da metáfora, um psicólogo recentemente descobriu, surpreendido, que uma das suas raízes se encontra no espírito do tabu. Houve uma época em que o medo foi a máxima inspiração humana,