A Matança
Não penses
que a carne apenas é aquela oca
lívida carcaça
em imóvel galope alucinado,
embarrada numa trave da adega.Não penses
que o milagre anual da salgadeira
vem sem morte e sem trabalhos. Não:Contar-te-ei
que primeiro atam o porco em sua loja
com uma corda em torno do focinho
e o arrastam à força para o ar lavado e frio.Contar-te-ei
que o porco luta e resiste: ora sentado
sobre os quartos traseiros (os futuros presuntos),
ora comicamente no solo as quatro patas
fincando com bravura se defende
da mal-agourada violação. Por fim, cedendo,
colocam-no, ainda contrafeito,
entre roncos, bufos e sacões,
no banco, deitado sobre o lado,
por forma a expor o vulnerável,
comestível coração.Contar-te-ei
que quando a faca penetra nas entranhas,
qual punhal vingador de antiga fome,
o grito é tal, tão desolado e aflito,
tão humano, tão digno de compaixão,
tão de criatura insultada e indefesa –
que tenho de tapar a mãos ambas os ouvidos
e recuar para os fundos da casa,
Poemas sobre Lados
164 resultadosMarketing
Aqui a meu lado o bom cidadão
escolheu Sagres
que é tudo tudo cerveja
a pausa que refresca
a longa pausa de um longo cigarro King Size.
atenção ao marketing.
Eu não gosto de cerveja
mas tenho de gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo da Sagres
para não contrariar os fabricantes de cerveja.
atenção ao marketing.
ninguém contraria os fabricantes da Opel e da Super
[Silver
nem os fabricantes de alcatifas para panaceias
nem as panaceias nem os códigos e os édredons macios
nem as mensagens de natal dos estadistas
nem os negociantes de armas da Suiça
nem o homem da capa negra que virou costas ao
[Palmolive.[…]
Sagres é uma boa cerveja
e eu acabarei por gostar da Sagres
como gosto do Rexina.
Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas
todas as bebidas da televisão têm vitaminas
mesmo as do programa literário que é detergente
e eu uso-as e sou um cidadão perfeito
e até já consigo adormecer sem hipnóticos
depois de tomar o Tofa descafeínado
e no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas
para me banhar na Torralta
cidadão perfeito perfeitamente bronzeado com o Ambre
[Solaire.
Povoamento
No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera
Cântico ao Amor
Somos na obra do Mundo
um corpo em carne e desejo
que alimenta de alquimia
o tumulto do vento
que o tempo do teu corpo espalha
ao passar.És mar,
és rainha
és o sol da tarde confidente
és acácia perfumada
companheira coroada
voz de inquietação
és insónia de seda
nas paredes do meu corpo.
Sulcas a lembrança
batalhas a meu lado
vives comigo às escondidas
mesmo no dia
do meu suicídio.Recordas-me a tarde
nos Champs Elysées
mas também em Roma, Veneza ou Madrid
minha companheira coroada
minha acácia perfumada
trazes a tarde incendiada trazes
a tarde no teu olhar
lembras a praia
onde nas ondas mergulhámos,
vem contigo a madrugada
beijada de carícias,
meus olhos não se cansam
são fruto do teu reino
oh sempre bela
oh sempre rainha,
tua palavra determinante
tuas mãos determinadas
tua alma vibrante
tua boca de eternidade
minha acácia perfumada
minha coluna rainha
falas comigo baixinho
dás-me tua vontade em surdina.
Contemplo o que não Vejo
Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.
Os Anos de Ti para Mim
O teu cabelo volta a ondular-se quando choro. Com o azul dos
teus olhos
pões a mesa do nosso amor: uma cama entre o verão e o
outono.
Bebemos o que alguém preparou, que não era eu, nem tu, nem
um terceiro:
sorvemos um último vazio.Miramo-nos nos espelhos do mar profundo e passamos mais
depressa um ao outro os alimentos:
a noite é a noite, começa com a manhã,
é ela que me deita a teu lado.Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno
Poema do homem-rã
Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rãs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
Vão e vêm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.Com barbatanas calçadas
e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.Sob o luminoso feixe
correm de um lado para outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.Onde as sereias de espuma?
Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?Eu sou o homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem
É tudo meu, tudo meu.
A Arte de Ser Amada
Eu sou líquida mas recolhida
no íntimo estanho de uma jarra
e em tua boca um clavicórdio
quer recordar-me que sou áriaaérea vária porém sentada
perfil que os flamingos voaram.
Pelos canteiros eu conto os gerânios
de uns tantos anos que nos separam.Teu amor de planta submarina
procura um húmido lugar.
Sabiamente preencho a piscina
que te dê o hábito de afogar.Do que não viste a minha idade
te inquieta como a ciência
do mundo ser muito velho
três vezes por mim rodeado
sem saber da tua existência.Pensas-me a ilha e me sitias
de violinos por todos os lados
e em tua pele o que eu respiro
é um ar de frutos sossegados.
Retrato de Mulher Triste
Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.
O Primeiro de Todos os Meus Sonhos
o primeiro de todos os meus sonhos era sobre
um amante e o seu único amor,
caminhando devagar(pensamento no pensamento)
por alguma verde misteriosa terraaté o meu segundo sonho começar—
o céu é agreste de folhas;que dançam
e dançando arrebatam(e arrebatando rodopiam
sobre um rapaz e uma rapariga que se assustam)mas essa mera fúria cedo se tornou
silêncio:em mais vasto sempre quem
dois pequeninos seres dormem(bonecas lado a lado)
imóveis sob a mágicapara sempre caindo neve.
E então este sonhador chorou:e então
ela rapidamente sonhou um sonho de primavera
—onde tu e eu estamos a florescerTradução de Cecília Rego Pinheiro
Amizade
Uma criança muito suja atira pedras a um cão. O cão
não foge. Esquiva-se e vem até junto da criança
para lhe lamber o rosto.Há, depois, um abraço apertado, de compreensão e
de amizade. E lado a lado, com a mãozinha muito
suja no pescoço felpudo, lá vão, pela rua estreita,
em direcção ao sol.
Há Mais de Meia Hora
Há mais de meia hora
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo.)
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo um volume da “Enciclopédia Britânica”.
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.Quem pudesse sintonizar tudo isto!
Tudo isto é fado
Perguntaste-me outro dia
Se eu sabia o que era o fado
Eu disse que não sabia
Tu ficaste admirado
Sem saber o que dizia
Eu menti naquela hora
E disse que não sabia
Mas vou-te dizer agoraAlmas vencidas
Noites perdidas
Sombras bizarras
Na mouraria
Canta um rufia
Choram guitarras
Amor ciúme
Cinzas e lume
Dor e pecado
Tudo isto existe
Tudo isto é triste
Tudo isto é fadoSe queres ser meu senhor
E teres-me sempre a teu lado
Não me fales só de amor
Fala-me também do fado
É canção que é meu castigo
Só basceu p’ra me perder
O fado é tudo o que eu digo
Mais o que eu não sei dizer
O Somno de João
O João dorme… (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar…)Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria… um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores…
Mas os astros são menores!O João dorme… Que regalo!
Deixal-o dormir, deixal-o!
Callae-vos, agoas do moinho!
Ó mar! falla mais baixinho…
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar…O João dorme… Innocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo somno profundo!
Não acordes para o mundo,
Póde affogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é…Ó Mae! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Ha só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir…
Tudo vae sem se sentir.»Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho… até morrer!E tu vel-o-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João!
Aproveitar o Tempo
Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha…
O trabalho honesto e superior…
O trabalho à Virgílio, à Mílton…
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos – nem mais nem menos –
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)…
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos –
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.Verbalismo…
Sim, verbalismo…
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça…
Não ter um acto indefinido nem factício…
Não ter um movimento desconforme com propósitos…
Boas maneiras da alma…
Elegância de persistir…Aproveitar o tempo!
A Melhor Maneira de Viajar é Sentir
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
A Noite na Ilha
Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raízes que se tocam.0 teu sono separou-se
talvez do meu
e andava à minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda não existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
— pão, vinho, amor e cólera —
te dou às mãos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
Sacrilégio
Como a alma pura, que teu corpo encerra,
Podes, tão bela e sensual, conter?
Pura demais para viver na terra,
Bela demais para no céu viver.Amo-te assim! – exulta, meu desejo!
É teu grande ideal que te aparece,
Oferecendo loucamente o beijo,
E castamente murmurando a prece!Amo-te assim, à fronte conservando
A parra e o acanto, sob o alvor do véu,
E para a terra os olhos abaixando,
E levantando os braços para o céu.Ainda quando, abraçados, nos enleva
O amor em que me abraso e em que te abrasas,
Vejo o teu resplandor arder na treva
E ouço a palpitação das tuas asas.Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes,
Os céus se estendem pelo teu olhar,
E, dentro dele, os serafins errantes
Passam nos raios claros do luar:Em vão! – descerras úmidos, e cheios
De promessas, os lábios sensuais,
E, à flor do peito, empinam-se-te os seios,
Ameaçadores como dois punhais.Como é cheirosa a tua carne ardente!
Toco-a, e sinto-a ofegar, ansiosa e louca.
Névoa
A Albano Nogueira
Abraçada à noite,
a névoa desce sobre a terra.Imprecisamente,
como se a névoa fosse dos meus olhos,
vejo o casario e as luzes da outra margem do rio.
Mais à direita, ao longe,
são já da névoa a praia, o mar.
Ouve-se apenas o ronco do farol
– um som molhado.
Para o lado dos pinhais,
anda a bruma a fazer medo
e a pôr mais pressa nos passos de quem foge.Não há luar, não há estrelas.
De novo, olho para o rio.
Não sei se o vejo:
anda a névoa, já, com ele,
e os meus olhos não dizem o que é bruma, o que é rio.
E ela não pára,
avança ao meu encontro.Cerca-me.
E eu tenho, só,
orvalho nas árvores do jardim,
gotas de água que se partem na alameda,
o ar húmido que me trespassa,
o molhado ronco do farol,
os cabelos encharcados
e pensamentos de névoa…
Quando Eu não te Tinha
Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima …
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza …
Tu mudaste a Natureza …
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.