O Ter Deveres
O ter deveres, que prolixa coisa!
Agora tenho eu que estar à uma menos cinco
Na Estação do Rossio, tabuleiro superior — despedida
Do amigo que vai no “Sud Express” de toda a gente
Para onde toda a gente vai, o Paris …Tenho que lá estar
E acreditem, o cansaço antecipado é tão grande
Que, se o “Sud Express” soubesse, descarrilava…Brincadeira de crianças?
Não, descarrilava a valer…
Que leve a minha vida dentro, arre, quando descarrile!…Tenho desejo forte,
E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo.
Poemas sobre Mundo
436 resultadosO Riso
Por substituição das emoções a poesia
recorda uma arte escura: vagares, caligrafia
da estação que ondula, oscilação de um cálamo
a meio do branco. A natureza encurva-se,
o coração assenta de modo a ver o mundo.
Eis um dia inteiro, o trabalhar dos olhos,
a falta de sentido de iluminar a luz.
A sombra é sem esforço, a respiração respira,
encontra-se uma face, transforma-se num som,
pequenos acidentes dilatam-se no céu.
Palavras que se apagam. Pensamentos fáceis.
Se isto é poesia eu rio-me no fim:
é como estar sentado, não ter arte nenhuma.
A Plácida Face Anónima de um Morto
A plácida face anónima de um morto.
Assim os antigos marinheiros portugueses,
Que temeram, seguindo contudo, o mar grande do Fim,
Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos,
Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.O que é que os taipais do mundo escondem nas montras de Deus?
Passamos e Agitamo-nos Debalde
Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?
Prazo de Vida
No meio do mundo faz frio,
faz frio no meio do mundo,
muito frio.Mandei armar o meu navio.
Volveremos ao mar profundo,
meu navio!No meio das águas faz frio.
Faz frio no meio das águas,
muito frio.Marinheiro serei sombrio,
por minha provisão de mágoas.
Tão sombrio!No meio da vida faz frio,
faz frio no meio da vida.
Muito frio.O universo ficou vazio,
porque a mão do amor foi partida
no vazio.
Purinha
O Espirito, a Nuvem, a Sombra, a Chymera,
Que (aonde ainda não sei) neste mundo me espera
Aquella que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Sr. Padre me dará p’ra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Ha-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabello em cachos, cachos d’uvas,
E negro como a capa das viuvas…
(Á maneira o trará das virgens de Belem
Que a Nossa Senhora ficava tão bem!)
E será uma espada a sua mão,
E branca como a neve do Marão,
E seus dedos serão como punhaes,
Fuzos de prata onde fiarei meus ais!
E os seus seios serão como dois ninhos,
E seus sonhos serão os passarinhos,
E será sua bocca uma romã,
Seus olhos duas Estrellinhas da Manhã!
Seu corpo ligeiro, tão leve, tão leve,
Como um sonho, como a neve,
Que hei-de suppor estar a ver, ao vel-a,
Cabrinhas montezas da Serra da Estrella…
E ha-de ser natural como as hervas dos montes
E as rolas das serras e as agoas das fontes…
Pergunta
Quem vem de longe e sabe o nome do meu lugar
e levou o caminho das conchas em mar
e dos olhos em rio
— quem vem de longe chorar por mim?Quem sabe que eu findo de dureza
e condensa ternura em suas mãos
para a derramar em afagos
por mim?Quem ouviu a angústia do meu brado,
sirene de um navio a vadiar no largo,
e me traz seus beijos e sua cor,
perdendo-se na bruma das madrugadas
por mim?Quem soube das asperezas da viagem
e pediu o pão negado
e o suor ao corpo torturado,
por mim? por mim?Quem gerou o mundo e lhe deu seu nome
e seu tamanho — imenso, imenso,
e em mim cabe?
A Velhice Pede Desculpas
Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.
O Livro dos Amantes
I
Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.II
Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.III
Príncipe secreto da aventura
em meus olhos um dia começada e finita.
Onda de amargura numa água tranquila.
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta.
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem
reacendendo em cadência e em passagem
a lua que trazia e que apagou.IV
Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras.
À Toa
O Primeiro Homem
Que lindo mundo! E eu só! Que tortura tamanha!
Ninguem! Meu pae é o céu. Minha mãe é a montanha.A Montanha
Os meus cabellos são os pinheiraes sombrios
E veias do meu corpo os azulados rios.Os Rios
Nós somos o suor que o Estio asperge e sua,
Nós somos, em Janeiro, a agoa-benta da Lua!A Lua
Eu sou a bala, no Ar detida, d’essa guerra
Que teve contra Deus, em seu principio, a Terra…A Terra
E eu uma das maçãs, entre outras a primeira,
Que certo Virgem viu cair d’uma macieira!A Macieira
Tantas ainda por cair! Vinde colhel-as!
Abanae a macieira e cairão estrellas!A Estrellas
No mar, á noite, reflectimo-nos, a olhar,
E formamos, assim, as Estrellas-do-mar…O Mar
Sou padre. São d’agoa meus Santos-Evangelhos:
Accendei meu altar, relampagos vermelhos!Os Relampagos
Nós somos (o contrario, embora, seja escripto)
Os fogos-tátuos d’esta cova do Infinito…O Infinito
Sou o mar sem borrasca,
Ter-te de Todas as Maneiras
E, todavia, eu não quisera amar-te.
Mas ter-te, sim, de todas as maneiras.
Quem és e como és, de quem te abeiras,
que dizes ou não dizes, pouco importa.E muito menos hoje me conforta.
Neste sorriso que te dou tranquilo,
eu ponho num remorso tudo aquilo
que em fundo amor eu te pudera dar-te,Se alguma vez te amasse de amor fundo,
senta-te à luz do mar, à luz do mundo,
como na vez primeira em que te vi,tão jovem, que era crime o contemplar-te.
E despe-te outra vez, pois vêm olhar-te
quantos te buscam de saber-te aqui.Sendo um de tantos, nunca te perdi.
Não Sei o que Ha de Vago
Não sei o que ha de vago,
Incoercivel, puro,
No vôo em que divago
Á tua busca, amor!
No vôo em que procuro
O balsamo, o aroma,
Que, se uma fórma toma,
É de impalpavel flôr!Oh como te eu aspiro
Na ventania agreste!
Oh como te eu admiro
Nas solidões do mar!
Quando o azul celeste
Descança n’essas agoas
Bem como n’estas magoas
Descança o teu olhar!Que placida harmonia
Então a pouco e pouco
Me eleva a fantasia
A novas regiões!
Dando-me ao uivo rouco
Do mar, n’essas cavernas,
O timbre das mais ternas
E pias orações!Parece todo o mundo
Só um immenso templo!
O mar já não tem fundo
E não tem fundo o céo!
E, em tudo, o que contemplo,
O que diviso em tudo,
És tu!… esse olhar mudo!…
O mundo… és tu… e eu!…
O que se Passa na Cama
O que se passa na cama
é segredo de quem ama.É segredo de quem ama
não conhecer pela rama
gozo que seja profundo,
elaborado na terra
e tão fora deste mundo
que o corpo, encontrando o corpo
e por ele navegando,
atinge a paz de outro horto,
noutro mundo: paz de morto,
nirvana, sono do pénis.Ai, cama, canção de cuna,
dorme, menina, nanana,
dorme a onça suçuarana,
dorme a cândida vagina,
dorme a última sirena
ou a penúltima… O pénis
dorme, puma, americana
fera exausta. Dorme, fulva
grinalda de tua vulva.
E silenciem os que amam,
entre lençol e cortina
ainda húmidos de sémen,
estes segredos de cama.
Os Sinais
Saibam quantos vivem
neste mundo imenso:
Deus não cheira a incenso.
É no estrume fresco
e na alga viscosa
que devemos ver
os sinais divinos
com os olhos de quando
éramos meninos.
Ó que Imenso Dissipar
Ó que imenso dissipar
por assim gostar de tudo.Com o meu ser estendido,
tenso ao apelo do mundo,
pulsando seu movimento
vou erguendo esta prisão.Os pés retidos, imóveis,
pelos choques de atração
com a alma paralisada
contendo tanta largueza
e aspectos de vastidão.Por que ter tantos sentidos,
o sentimento tão apto
e o coração vulnerável?Por que o sentir sem repouso
num sentir que é um rapto,
exausto de comunhão?Um pobreza qualquer,
pobreza em voz, em beleza,
em querer, em perceber,
uma pobreza qualquer
onde eu possa enriquecer.
Villa Dei Misteri
Tiro os óculos e recua o mundo:
torno à mais árdua intimidade.
Diónisos ou Penteus, antes do sangue
pesa já a vinha sobre as colinas
de Outubro.As bodas místicas
do deus e da noviça, meu destino
branco, minha face nocturna,
não os preserva a ciência
dos três livros, nem figurariam,por certo, na cinza dos restantes.
Sei, entre névoas e azul, de uma
biblioteca deserta, cujas estantes,
por desnudas, não enjeitam
a mais discreta sabedoria.Em sua transparência se inscrevem,
como a luz à luz se sobrepõe.
Trago na pele e nos olhos,
sobre a língua e o palato,
a memória escaldantede uma mulher.
Devora-me
um álcool lento e sedicioso.
De todas as mortes sofridas,
só esta temo e não desejo.
voz numa pedra
Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do ventoNão digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe essa cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhas como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao sol coisa nenhuma
nada está escrito afinal
Andamento
De que estarei me despedindo hoje?
Há em mim uma clara ressonância de
despedida.
Mas não devo saber,
nem é preciso saber.
Creio que vim
pra dizer um dia
na cara do mundo:
hoje estou me despedindo.
E as criaturas boas do meu sangue
abririam a boca
que lhes cortasse o ímpeto inexpresso.
Claro que estou me despedindo.
Hoje sou mais criança do que nunca.
A Cidade do Sonho
Sofres e choras? Vem comigo! Vou mostrar-te
O caminho que leva à Cidade do Sonho…
De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
Mas o íngreme trajecto é florido e risonho.Vai por entre rosais, sinuoso e macio,
Como o caminho chão duma aldeia ao luar,
Todo branco a luzir numa noite de Estio,
Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.Se o teu ânimo sofre amarguras na vida,
Deves empreender essa jornada louca;
O Sonho é para nós a Terra Prometida:
Em beijos o maná chove na nossa boca…Vistos dessa eminência, o mundo e as suas
[sombras,
Tingem-se no esplendor dum perpétuo arrebol;
O mais estéril chão tapeta-se de alfombras,
Não há nuvens no céu, nunca se põe o Sol.Nela mora encantada a Ventura perfeita
Que no mundo jamais nos é dado sentir…
E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
A própria Dor começa a cantar e a sorrir!Que importa o despertar? Esse instante divino
Como recordação indelével persiste;
E neste amargo exílio,
Um Ofício que Fosse de Intensidade e Calma
Um ofício que fosse de intensidade e calma
e de um fulgor feliz E que durasse
com a densidade ardente e contemporâneo
de quem está no elemento aceso e é a estatura
da água num corpo de alegria E que fosse fundo
o fervor de ser a metamorfose da matéria
que já não se separa da incessante busca
que se identifica com a concavidade originária
que nos faz andar e estar de pé
expostos sempre à única face do mundo
Que a palavra fosse sempre a travessia
de um espaço em que ela própria fosse aérea
do outro lado de nós e do outro lado de cá
tão idêntica a si que unisse o dizer e o ser
e já sem distância e não-distância nada a separasse
desse rosto que na travessia é o rosto do ar e de nós próprios