O Cúmplice
Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos.
Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Poemas
2662 resultadosDesinferno II
Caísse a montanha e do oiro o brilho
O meigo jardim abolisse a flor
A mãe desmoesse as carnes do filho
Por botão de vídeo se fizesse amorO livro morresse, a obra parasse
Soasse a granizo o que era alegria
A porta do ar se calafetasse
Que eu de amor apenas ressuscitaria
Enlevo
Não brilha o sol,
Nem póde a lua
Brilhar na sua
Presença d’ella!..
Nenhuma estrella
Brilha deante
Da minha amante,
Da minha amada!A madrugada
Quanto não perde!
O campo verde
Quanto esmorece!
Quanto parece
A voz da ave
Menos suave
Que a sua falla!A flôr exhala
Menos perfume
Do que é costume
O seu cabello!
Que basta vêl-o,
Prende-se a gente!
Prende-se e sente
Gosto ineffavel!Que riso affavel
Aquelle riso!
Que paraíso
Aquella bôca!
Penetra, toca,
Enche de inveja
Um ar que seja
Da sua graça!Onde ella passa,
Onde ella chega,
Quem lhe não prega
Olhos avaros!
Ha dotes raros,
Rara doçura
N’aquella pura
Casta existencia!Oh! que innocencia
Que ella respira!
A alma aspira
Não sei que aroma
Mal nos assoma
Ao longe aquella
Pallida estrella,
Que rege o mundo!…Nunca do fundo
Do oceano
Foi braço humano
Colher tão linda
Perola ainda,
Agora que Sinto Amor
Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.
Sei Bem que Nunca Serei Ninguém
Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.
Se tanto me dói que as coisas passem
Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem
Primeira Casa
Muitas vezes, por outras casas
e noutros países sonhava
com o soalho antigo e a varanda
onde um entardecer de plátanos
enchia o peito de uma secreta
ansiedade, sem motivo. O quarto
da Mãe, esse lugar de mistérios
fixara-se na sua memória, como
um quadro de autor irremediavelmente
perdido. Sempre que regressava
minguava-lhe a coragem adiada
para pedir aos ocasionais locatários,
a permissão provavelmente estranha de
uma visita. Um dia a velha casa
debruçada sobre os telhados,
apareceu-lhe quase demolida e agora
avultava como um dente postiço, com
uma loja de lingerie barata no
rés-do-chão e um par de janelas
com alumínio e sem mistério
onde os plátanos, há muito ceifados
pelo asfalto, recusariam entardecer.
Se Me Deixares, Eu Digo
Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente;
E, n’este mundo de enganos,
Falla verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado commigo,
Não procures ser ausente:
– Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente.
Esta Espécie de Loucura
Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há
Segredo
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeçanem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessaDeixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poçoNão contes do meu
novelo
nem da roca de fiarnem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar
Até Amanhã
Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.
Sono
Dormir
mas o sonho
repassa
duma insistente dor
a lembrança
da vida
água outra vez bebida
na pobreza da noite:
e assim perdido
o sono
o olvido
bates, coração, repetes
sem querer
o dia.
A Vida Mais Vil Antes que a Morte
O sono é bom pois despertamos dele
Para saber que é bom. Se a morte é sono
Despertaremos dela;
Se não, e não é sono,Conquanto em nós é nosso a refusemos
Enquanto em nossos corpos condenados
Dura, do carcereiro,
A licença indecisa.Lídia, a vida mais vil antes que a morte,
Que desconheço, quero; e as flores colho
Que te entrego, votivas
De um pequeno destino.
Não Sei Meu Amor
Não sei
meu amor
porque a memória
se fecha
quando do abismo da vida
já tombaram os meus olhos
na aridez da esperança.Não sei
meu amor
porque a memória
chora, oculta
se ninguém a viu nascer.Entretanto
de teus olhos, águias de fogo,
vem um reino eterno,
de calor e significado
claro e sem segredos.Fecho os meus
e volta a dor
na cruzada
a trazer-me teus olhos
num espaço sem fronteira
na vertigem de teu corpo.Todo o meu desejo pressente
que da lembrança recomeça
o regresso da tua criação
dessa tarde emocionada
que me trouxe à vida
tua vida transfigurada.
Vendo-a Sorrir
(A minha filha)
Filha, quando sorris, iluminas a casa
Dum celeste esplendor.
A alegria é na infância o que na ave é asa
E perfume na flor.Ó doirada alegria, ó virgindade santa
Do sorriso infantil!
Quando o teu lábio ri, filha, a minha alma canta
Todo o poema de Abril.Ao ver esse sorriso, ó filha, se concentro
Em ti o meu olhar,
Engolfa-se-me o céu azul pela alma dentro
Com pombas a voar.Sou o Sol que agoniza, e tu, meu anjo loiro,
És o Sol que se eleva.
Inunda-me de luz, sorri, polvilha de oiro
O meu manto de treva!
Acordar
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
SejaA mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas…
A Verdade Unifica
Amigos, gostaria que soubésseis a Verdade e a dissésseis!
Não como cansados Césares fugitivos: Amanhã vem farinha!
Mas como Lenine: Amanhã à noitinha
Estamos perdidos, se não…
Ou como se diz na cantiguinha:Irmãos, com esta questão
Quero logo começar:
Da nossa difícil situação
Não há que escapar.Amigos, uma forte confissão
E um forte SE NÃO!Tradução de Paulo Quintela
Gazel da Paciente Espera
Para Regina Célia Colónia
Quanto te esperei
nas portas do dia
e te esperei
quando a terra nascia:
o espírito metáfora
boiava.E te esperava
mas nenhuma nebulosa
te envolvia e nenhum
peixe era tu e nenhuma
circular água apascentava
esta maternidade.Te esperava
e o dia voltava
e vinha
e nas portas
o relógio de sinais
rangia.E te esperava,
ave lua
ovelha de tuas mãos
a noite.
Te esperava
porque as palavras
as palavras
batem à porta
e se abrem.E te esperarei
a vida repleta
e a morte.Depois na eternidade
recomeço.
Lamento
Senhor! Senhor! que um ai nunca me ouviste
Na minha dôr!
Ai vida, vida minha, como és triste!…
Senhor! Senhor!Quando eu nasci, o sol cobriu o rosto
Mal que eu o vi!
Tingiu-se o céo de sangue, e era sol-posto,
Quando eu nasci!Pela manhã, a rosa era mais alva
Que a alva lã!
E o cravo desmaiou á estrella-d’alva,
Pela manhã!Ao longe, o mar se ouviu, leão piedoso,
Um ai soltar!
Pelas praias, se ouviu gemer ancioso,
Ao longe, o mar!Oh roixinol! a ti, nasce-te o dia
Ao pôr do sol!
Mostre-me a campa a luz que te alumia,
Oh roixinol!
Vivo na Esperança de um Gesto
Vivo na esperança de um gesto
Que hás-de fazer.
Gesto, claro, é maneira de dizer,
Pois o que importa é o resto
Que esse gesto tem de ter.
Tem que ter sinceridade
Sem parecer premeditado;
E tem que ser convincente,
Mas de maneira diferente
Do discurso preparado.
Sem me alargar, não resisto
À tentação de dizer
Que o gesto não é só isto…
Quando tu, em confusão,
Sabendo que estou à espera,
Me mostras que só hesitas
Por não saber começar,
Que tentações de falar!
Porque enfim, como adivinhas,
Esse gesto eu sei qual é,
Mas se o disser, já não é…