Poemas sobre Quadros

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Poemas de quadros escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Recordação

E tu esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.

Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.

E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou.

Tradução de Maria João Costa Pereira

O Casulo

No casulo:
uma mesa quatro cinco estantes
livros por centenas ou milhares
tijolos de papel onde as traças
acasalam e o caruncho espreita
sólidas muralhas de elvezires onde
a rua não penetra
uma máquina de escrever olivetti
com a tinta acumulada nas letras mais redondas
cachimbos barros estanhos medalhas fotos
bonecos marafonas lembranças
retratos alguns gente ida ou vinda
gorros usbeques gorros bailundos leques
japoneses arpões açorianos sinos de não sei donde
ou sei esperem sinos da tróica em natais nocturnos
marfins africanos óleos desenhos calendários
feitiços da Baía a mão a fazer figas
tudo do melhor contra raios coriscos mau olhado
retratos dizia Jorge o de Salvador Júlio o da Morgadinha
Berglin o cientista Kostas o dramaturgo
e outros e outros
Afonso Duarte o das ossadas pórtico
destas lamúrias o sorriso sibilino e rugoso
que matou no Nemésio o bicho harmonioso
mais de agora o Umberto Eco barbudo
a filtrar-me com medievismo os gestos tontos
e outros e outros
suecos brasileiros romenos gregos
e ainda aqueles em que a Zita foi escrevendo
a minha sina de andarilho
Tolstoi patrono obcecante um pastor a tocar
pífaro algures nos Balcãs sinais da Bulgária da Polónia
da Finlândia sinais de tantas partes onde
fui um outro de biografia aberrante
sinais da minha terra também
a minha de verdade e não as outras
a que chamam minhas por distraído palpite
o Lima de Freitas num candeeiro alumiando
a mulher verde-azul em casas assombrada
mestre Marques d’Oliveira num esquisso
de alto coturno a carta de Abel Salazar
que o sol foi comendo não se lendo já
o que a censura omitiu
aqui a China também representada
um ícone de Sófia as plácidas cabras
do Calasans o tinteiro de quando
se usavam plumas roubaram-se o missal do Cicogna
um almofariz para esferográficas furta-cores
a caixa de madeira floreada veio da Rússia
deu-ma a Tatiana sob promessa (cumprida)
de a pôr bem em frente das minhas divagações
anémonas nórdicas da Anne
miosótis búlgaros da Rumiana
o poster é alemão Friede den Kindern
nunca pedi a ninguém a decifração
dois horóscopos face a face
cangaceiros nordestinos
o menino ajoelhado do Tó Zé
num gesso já sem braços nem rosto
objectos objectos o pote tem as armas de não lembro
[quem
embora o nome que venha por de cima
seja o meu e eu também no óleo carrancudo
do Zé Lima há um ror de anos
melhor não saber quantos
o molde para o bronze é um perfil onde
desenganadamente me reconheço
tanta bugiganga tanto bazar tanto papel
branco ou impresso uma faca para
apunhalar alguém a cassete de poesias na voz
da Maria Vitorino as esculturas astecas
do Miguel medalhas medalhas outra vez lembranças
agendas sem préstimo canetas gastas mais papéis
letras miúdas ou letras farfalhudas
depende da ocasião
um livro de filigrana
as paredes mal se vêem estantes copiosas já disse
quadros em demasia e ainda
as rendas de minha mãe em molduras destoadas
ela no retrato de cenho descontente
fitando-me até ao miolo dos desvairos
o bordão de régulo justiceiro
obliquando no trono de cactos
amuletos africanos o mata-borrão que foi
de um pide deu-mo o fuzileiro no pós-Abril
uma bela cabeça de mulher do João Fragoso
jarras de sacristia candeias de cobre
sem pavio um samovar de madeira um samurai de
[veludo
os painéis de São Vicente em miniatura
a áurea trombeta do troféu lusíada
de parceria com o Manuel Cargaleiro
áureos pesados troféus o marasmo branco
de Pavia na tela sem idade
livros livros os correios não páram
de mos trazer para maior sufocação
cartas a granel por responder relógio não há mas ouço-o
sem falhar um segundo há cordas cordões medalhas
[medalhões
armas lauréis proibições
perfumes em minaretes levantinos.

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Loira

Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente,
Mal pousando no chão os pés ligeiros.

O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.

E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.

Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.

Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.

E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.

E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.

Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,

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O Sentimento dum Ocidental

I

Avé-Maria

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!

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De Esquecer

Demorei-me muito tempo ao pé de ti.
As portas fechadas por dentro, como se encerrasses
o amor e a lei. Demorei-me demais. Ao fim da tarde,
nesse mesmo dia que já morreu,
olhámo-nos devagar, mas distraídos. Diria até que anoiteceu.

Nunca falámos do amor que chega tarde.
Nem o interpelámos (como se já não pudesse
ter nome). Fingia ter esquecido o teu corpo
nas muralhas. Nas areias.

Vês aqui alguma figura? Ninguém vê.
Repara no ponto preto que alastra na margem do quadro,
nas minhas lágrimas desse tempo.
Relê.

A Casa Branca Nau Preta

Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se…
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro…
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora…
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim…
Há uma interrupção lateral na minha consciência…
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par…
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma…

Quem dera que houvesse
Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois…
Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem…
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir…

As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho…

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,

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Não!

Tenho-te muito amor,
E amas-me muito, creio:
Mas ouve-me, receio
Tomar-te desgraçada:
O homem, minha amada,
Não perde nada, goza;
Mas a mulher é rosa…
Sim, a mulher é flor!

Ora e a flor, vê tu
No que ela se resume…
Faltando-lhe o perfume,
Que é a essência dela,
A mais viçosa e bela
Vê-a a gente e… basta.
Sê sempre, sempre, casta!
Terás quanto possuo!

Terás, enquanto a mim
Me alumiar teu rosto,
Uma alma toda gosto,
Enlevo, riso, encanto!
Depois terás meu pranto
Nas praias solitárias…
Ondas tumultuárias
De lágrimas sem fim!

À noite, que o pesar
Me arrebatar de cada,
Irei na campa rasa
Que resguardar teus ossos,
Ah! recordando os nossos
Tão venturosos dias,
Fazer-te as cinzas frias
Ainda palpitar!

Mil beijos, doce bem,
Darei no pó sagrado,
Em que se houver tornado
Teu corpo tão galante!
Com pena, minha amante,
De não ter a morte
Caído a mim em sorte…
Caído em mim também!

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Tédio

Tenho as recordações d’um velho milenário!

Um grande contador, um prodigioso armário,
Cheiinho, a abarrotar, de cartas memoriais,
Bilhetinhos de amor, recibos, madrigais,
Mais segredos não tem do que eu na mente abrigo.
Meu cer’bro faz lembrar descomunal jazigo;
Nem a vala comum encerra tanto morto!

— Eu sou um cemitério estranho, sem conforto,
Onde vermes aos mil — remorsos doloridos,
Atacam de pref’rência os meus mortos queridos.
Eu sou um toucador, com rosas desbotadas,
Onde jazem no chão as modas despresadas,
E onde, sós, tristemente, os quadros de Boucher
Fuem o doce olor d’um frasco de Gellé.

Nada pode igualar os dias tormentosos
Em que, sob a pressão de invernos rigorosos,
O Tédio, fruto inf’liz da incuriosidade,
Alcança as proporções da Imortalidade.

— Desde hoje, não és mais, ó matéria vivente,
Do que granito envolto em terror inconsciente.
A emergir d’um Saarah movediço, brumoso!
Velha esfinge que dorme um sono misterioso,
Esquecida, ignorada, e cuja face fria
Só brilha quando o Sol dá a boa-noite ao dia!

Tradução de Delfim Guimarães

De Amor

Considera o amor como um retoque num quadro antigo
que subitamente o vem iluminar:
vimo-nos muitas vezes antes de seres no meu olhar
aquela luz em um país perdido
que tu quiseste em vão esconder, negar.

O quadro manteve o mesmo fulgor:
a reverberação no silêncio da perda,
o desamor.

Quem avivou o brilho das tintas, quem corrigiu o baço
sinal da morte? Falámos de uma dor
num fundo esbatido. Falámos do grito mudo do teu corpo.
Falámos de amor.

Como Nossos Pais

Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina!
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz
Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantada como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
O cheiro da nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração
Já faz tempo eu vi você na rua cabelo ao vento gente jovem reunida
Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais
Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como nossos pais
Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam,

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Lúbrica

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançastes, no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais,
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas…

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!

Teu Só Sossego aqui Contigo Ausente

Teu só sossego aqui contigo ausente
Na casa que te veste à justa de paredes,
Tenho-te em móveis, nos perfumes, na semente
Dos cuidados que deixas ao partir,
A doce estância toda povoada
Dos mínimos sinais, dos sapatos de plinto
Que te elevam, Terpsícore ou Mnemósine,
Como uma estátua fiel ao labirinto.
Aqui, androceu da flor, o cálice abre aromas,
Farmácia chamo à tua colecção de vidros
Onde, à margem de planos e de somas,
Tenho remédio para os meus alvidros.
O chá é forte e adstringente,
O leite grosso sabe à ordenha,
E até nos quadros vive gente
À espera que a dona venha.
Porque tudo nos tectos é coroa,
No chão as traînes, os passinhos salpicados
Como o vento ainda longe de Lisboa
Escolheu a gaivota do balanço
Que no cais engolfado melhor voa:
Um vácuo, enfim, que o não será — tão logo
Chegues no ar medido e a aço propulso:
Por isso um pouco de fogo
Bate sanguíneo em meu pulso,
Pois o amor de quem espera
É uma graça a vencer.

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Gratidão

A minha gratidão te dá meus versos:
Meus versos, da lisonja não tocados,
Satélites de Amor, Amor seguindo
Co’as asas que lhes pôs benigna Fama,
Qual níveo bando de inocentes pombas,
Os lares vão saudar, propícios lares,
Que em doce recepção me contiveram
Incertos passos da Indigência errante;
Dos olhos vão ser lidos, que apiedara
A catástrofe acerba de meus dias,
Dos infortúnios meus o quadro triste;
Vão pousar-te nas mãos, nas mãos que foram
Tão dadivosas para o vate opresso,
Que o peso dos grilhões me aligeiraram,
Que sobre espinhos me esparziram flores,
Enquanto não recentes, vãos amigos,
Inúteis corações, volúvel turba
(A versos mais atenta que a suspiros)
No Letes mergulhou memórias minhas.
Amigos da Ventura e não de Elmano,
Aónio serviçal de vós me vinga;
Ao nome da Virtude o Vício core.

Não sei se vens de heróis, se vens de grandes;
Não sei, meu benfeitor, se teus maiores
Foram cobertos, decorados foram
De purpúreos dosséis, de márcios loiros;
Sei que frequentas da Amizade o templo,
Que és grande,

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Retórica da Paisagem

O que se pede da poesia? Que nos entretenha os olhos
com as rendas sulfurosas de um doentio crepúsculo?
Com efeito, no poema, as palavras não nos servem
de cestos em que se recolham – dilatados, quase
a cair das árvores – os frutos. E contudo, continuamos
a confundir os caminhos do poema com os do mundo
quando eles, na natureza, apenas nos apontam
a incerteza do destino. As palavras repetem-se –
frutos atirados sobre a mesa – e a morte,
para quem não acredita no poder de transfiguração
das metáforas, esgota da vida todo o sentido.
Diz-se: os ramos não crescem no quadro,
os pássaros deixam de assolar a paisagem –
e o pensamento, ao reflectir-se, deixa a tela
pejada dos restos em que se perdeu pelo
horizonte. Mas todo o conhecimento
acaba no ponto em que o voo se
confunde com a linha acidentada da planície.

Poema da Voz que Escuta

Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro – a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.

Noite Fechada

L.

Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?

Bem me lembro das altas ruazinhas,
Que ambos nós percorremos de mãos dadas:
Às janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.

Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado tempo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!

Nós saíramos próximo ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.

Como uma mitra a cúpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.

A Lua dava trêmulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,

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No Dia que para Sempre Separámos do Corpo

No dia que para sempre separámos do corpo,
havia nesse dia sobre o livro de gravuras
um insecto com os breves sinais de uma aranha.

Esperávamos um recado que se fez esperar e
tinha as mãos no rosto e fora meu.
A medo a dor para onde não sei bem levava a dor
o rosto.

Havia tudo um pouco misturado. Antigas cartas
velhos poemas.
Até do outro lado da janela víamos tristes
tristes rapazes jogando a bola,

corpo jogado sob o vento de abril e o de
março.

Dentro do quadro via a camisola de lã branca
e o que de loiro havia do recente sol
via a dor o recado desejado no negro azul
das aves.

Sobre o céu, o mar, esse tinha-lo agora nos novos
olhos.

Quando a Fortuna Encetou com Desgraças

Quando a Fortuna, de inconstante aviso,
Encetou com desgraças
O varão que não veio humilde, abjecto
Adorar o seu Nume,
Na refalsada Corte, ou ante os cofres
Chapeados de Pluto;
Levando avante, o seu empenho, e acinte,
Maléfica lhe emborca
Sobre a cabeça a mágoas devotada,
Toda a Urna infelice,
Que Jove encheu colérico co’as penas
De atormentado inferno.
Dos ombros do Varão constante e justo
Resvalam debruçadas
Perdas de bens, desonras mal sofridas
A lhe aferrar o peito
Co’as garras afaimadas da pobreza;
Logo os tristes Pesares
Em torno ao coração serpeiam, mordem,
Trajando a rojo lutos.
Vem a má nova, de agouradas falas,
Que se compõe sequela
De tibiezas, senões, desconfianças,
Desamparo de amigos.
A Doença, com mão finada abrange
Os fatigados membros
E no âmago do peito as amargaras
Vão assentar morada.
Com índice maligno a Providência
Lhe aponta no futuro,
Em nebuloso quadro hórridas formas
De sinistros sucessos.
Quem não quisera, com melhor semblante
Despedir-se do dia,
E fraudar, com as sombras do jazigo,

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Meditação Sobre os Poderes

Rubricavam os decretos, as folhas tristes
sobre a mesa dos seus poderes efémeros.
Queriam ser reis, czares, tantas coisas,
e rodeavam-se de pequenos corvos,
palradores e reverentes, dos que repetem:
és grande, ninguém te iguala, ninguém.
Repartiam entre si os tesouros e as dádivas,
murmurando forjadas confidências,
não amando ninguém, nada respeitando.
Encantavam-se com o eco liquefeito
das suas vozes comandando, decretando.
Banqueteavam-se com a pequenez
de tudo quanto julgavam ser grande,
com os quadros, com o fulgor novo-rico
das vénias e dos protocolos. Vinha a morte
e mostrava-lhes como tudo é fugaz
quando, humanamente, se está de passagem,
corpo em trânsito para lado nenhum.
Acabaram sempre a chorar sobre a miséria
dos seus títulos afundados na terra lamacenta.

Fizeram os dias assim

Por mais que larguem os braços
Por mais que soltem amarras
E que se tapem as covas

Por mais que rasguem os quadros
Por mais que queimem as leis
E que os costumes esmoreçam

Por mais que arrasem as feras
E que os papões arrefeçam
E que as bruxas se convertam

Por mais que riam as caras
E que ternura se esqueça
Por mais que o amor prevaleça
Vocês
Fizeram os dias assim!

Não nos venham pedir contas
Não venham pôr-nos regras
Sabemos que os nossos dias
Não vão ser gastos assim!