Eu, que sou feio…
Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura.
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.E, quando socorreste um miserável,
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, – talvez não o suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.
Poemas sobre Tristes de Cesário Verde
9 resultadosIronias do Desgosto
“Onde é que te nasceu” – dizia-me ela às vezes –
“O horror calado e triste às coisas sepulcrais?
“Por que é que não possuis a verve dos franceses
“E aspiras, em silêncio, os frascos dos meus sais?“Por que é que tens no olhar, moroso e persistente,
“As sombras dum jazigo e as fundas abstrações,
“E abrigas tanto fel no peito, que não sente
“O abalo feminil das minhas expansões?“Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
“Mas quando tentas rir parece então, meu bem,
“Que estão edificando um negro cadafalso
“E ou vai alguém morrer ou vão matar alguém!“Eu vim – não sabes tu? – para gozar em maio,
“No campo, a quietação banhada de prazer!
“Não vês, ó descorado, as vestes com que saio,
“E os júbilos, que abril acaba de trazer?“Não vês como a campina é toda embalsamada
“E como nos alegra em cada nova flor?
“Então por que é que tens na fronte consternada”
“Um não-sei-quê tocante e enternecedor?”Eu só lhe respondia: — “Escuta-me.
A Débil
Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, — talvez que não o suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.Sorriam, nos seus trens,
Loira
Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente,
Mal pousando no chão os pés ligeiros.O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
O Sentimento dum Ocidental
I
Avé-Maria
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
Flores Velhas
Fui ontem visitar o jardinzinho agreste,
Aonde tanta vez a lua nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um vôo.Em tudo cintilava o límpido poema
Com ósculos rimado às luzes dos planetas:
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrigais;
E as vibrações, o rio, os astros, a paisagem,
Traziam-me à memória idílios imortais.E nosso bom romance escrito num desterro,
Com beijos sem ruído em noites sem luar,
Fizeram-mo reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas-de-toucar.Mas tu agora nunca, ah! Nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu não te beijarei, às horas sonolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados…Eu, por não ter sabido amar os movimentos
Da estrofe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as decepções e os grandes desalentos
E tenho um riso meu como o sorrir de Judas.
Cinismos
Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.Hei de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso,Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!E eu hei de, então, soltar uma risada.
Responso
I
Num castelo deserto e solitário,
Toda de preto, às horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas dum sudário
E chora como as grandes criminosas.Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas
Em que ela esconde as lágrimas singelas.II
É loura como as doces escocesas,
Duma beleza ideal, quase indecisa;
Circunda-se de luto e de tristezas
E excede a melancólica Artemisa.Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seu pecados.III
Alta noite, os planetas argentados
Deslizam um olhar macio e vago
Nos seus olhos de pranto marejados
E nas águas mansíssimas do lago.Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,
E faria que a noite fosse eterna.IV
E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pegos,
E nas salas ressoam uns suspiros
Dolentes como as súplicas dos cegos.Fosse eu aquelas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.V
E ela vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas destronadas,
Setentrional
Talvez já te não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
À tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.Talvez já te não lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que moramos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversamos.Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,