A um Crucifixo
Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (Ăł Verbo!) o som fremente?
Morreste… ah! dorme em paz! nĂŁo volvas, que descrente
Arrojaras de novo Ă campa os membros lassos…Agora, como entĂŁo, na mesma terra erma,
A mesma humanidade Ă© sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo cĂ©u, frio como um sudário…E agora, como entĂŁo, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —
Sonetos sobre Ideais de Antero de Quental
7 resultadosElogio da Morte
I
Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.Não que de larvas me povôe a mente
Esse vácuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razĂŁo por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo…Nem fantasmas nocturnos visionários,
Nem desfilar de espectros mortuários,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte…Nada! o fundo dum poço, hĂşmido e morno,
Um muro de silĂŞncio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.II
Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia.Atravesso, no escuro, a névoa fria
D’um mundo estranho, que povĂ´a o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
SĂł das visões da noite se confia.Que mĂsticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abismos aparecem,
A meus olhos, na muda imensidade!N’esta viagem pelo ermo espaço,
Ideal
Aquela, que eu adoro, nĂŁo Ă© feita
De lĂrios nem de rosas purpurinas,
NĂŁo tem as formas languidas, divinas
Da antiga VĂ©nus de cintura estreita…NĂŁo Ă© a Circe, cuja mĂŁo suspeita
Compõe filtros mortaes entre ruinas,
Nem a Amazona, que se agarra ás crinas
D’um corcel e combate satisfeita…A mim mesmo pergunto, e nĂŁo atino
Com o nome que dĂŞ a essa visĂŁo,
Que ora amostra ora esconde o meu destino…É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidĂŁo,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo…
Na MĂŁo de Deus
Na mĂŁo de Deus, na sua mĂŁo direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da PaixĂŁo
A forma transitória e imperfeita.Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mĂŁe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mĂŁo de Deus eternamente!
Voz de Outono
Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
— «Mais te valera, nú e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima soidão,Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel
deveza, Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com Ăłdio e raiva e dor… que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!» —
Com Os Mortos
Os que amei, onde estĂŁo? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…E eu mesmo, com os pĂ©s tambĂ©m imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
SĂł vejo espuma lĂvida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhĂŁo ideal do eterno Bem.
Nocturno
EspĂrito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a Lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu sĂł entendes bem o meu tormento…Como um canto longĂnquo – triste e lento-
Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração que tumultua,
Tu vestes pouco a pouco o esquecimento…A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!