Sonetos Interrogativos de Luís de CamÔes

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Como Fizeste, PĂłrcia, Tal Ferida?

Como fizeste, PĂłrcia, tal ferida?
Foi voluntĂĄria, ou foi por inocĂȘncia?
-Mas foi fazer Amor experiĂȘncia
se podia sofrer tirar me a vida.

-E com teu prĂłprio sangue te convida
a nĂŁo pores Ă  vida resistĂȘncia?
-Ando me acostumando Ă  paciĂȘncia,
porque o temor a morte nĂŁo impida.

-Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?-Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
-Si: que a dor costumada nĂŁo se sente;
e eu nĂŁo quero a morte sem a pena.

Quem pode livre ser, gentil Senhora,

Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juĂ­zo sossegado,
Se o Menino que de olhos Ă© privado
Nas meninas de vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que o vivo lume e o rosto delicado
Imagens sĂŁo nas quais o Amor se adora.

Quem vĂȘ que em branca neve nascem rosas
Que fios crespos de ouro vĂŁo cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,

Raios de ouro verĂĄ, que as duvidosas
Almas estĂŁo no peito trespassando
Assim como um cristal o Sol trespassa.

Doce Contentamento JĂĄ Passado

Doce contentamento jĂĄ passado,
em que todo meu bem jĂĄ consistia,
quem vos levou de minha companhia
e me deixou de vĂłs tĂŁo apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi, cruel e dura,
aquela que causou meu perdimento,
com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhĂŒa criatura,
que nĂŁo pode nenhum impedimento
fugir do que [lhe] ordena sua estrela.

Ondados Fios D’ouro Reluzente

Ondados fios d’ouro reluzente,
que, agora da mĂŁo bela recolhidos,
agora sobre as rosas estendidos,
fazeis que sua beleza se acrescente;

Olhos, que vos moveis tĂŁo docemente,
em mil divinos raios entendidos,
se de cĂĄ me levais alma e sentidos,
que fora, se de vĂłs nĂŁo fora ausente?

Honesto riso, que entre a mor fineza
de perlas e corais nasce e parece,
se n’alma em doces ecos nĂŁo o ouvisse!

Se imaginando sĂł tanta beleza
de si, em nova glĂłria, a alma se esquece,
que farĂĄ quando a vir? Ah! quem a visse!

Se me vem tanta glĂłria sĂł de olhar-te

Se me vem tanta glĂłria sĂł de olhar-te,
É pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
GrĂŁo paga de um engano Ă© desejar-te.

Se aspiro por quem Ă©s a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te;
Se mal me quero a mim por bem querer-te,
Que prémio querer posso mais que amar-te?

Porque um tĂŁo raro amor nĂŁo me socorre?
Ó humano tesouro! Ó doce glória!
Ditoso quem Ă  morte por ti corre!

Sempre escrita estarĂĄs nesta memĂłria;
E esta alma viverĂĄ, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha Ă© a vitĂłria.

Imagens sĂŁo adonde Amor se Adora

Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juĂ­zo sossegado,
Se o Menino, que de olhos Ă© privado,
Nas Meninas dos vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que vivo lume, e o rosto delicado,
Imagens sĂŁo adonde Amor se adora.

Quem vĂȘ que em branca neve nascem rosas
Que crespos fios de ouro vĂŁo cercando?
Se por entre esta luz a vista passa,

Raios de ouro verĂĄ, que as duvidosas
Almas estĂŁo no peito traspassando,
Assim como um cristal o Sol traspassa.

JĂĄ A Saudosa Aurora Destoucava

JĂĄ a saudosa Aurora destoucava
os seus cabelos d’ouro delicados,
e as flores, nos campos esmaltados,
do cristalino orvalho borrifava;

quando o fermoso gado se espalhava
de SĂ­lvio e de Laurente pelos prados;
pastores ambos, e ambos apartados,
de quem o mesmo Amor nĂŁo se apartava.

Com verdadeiras lĂĄgrimas, Laurente,
-NĂŁo sei (dizia) Ăł Ninfa delicada,
porque nĂŁo morre jĂĄ quem vive ausente,

pois a vida sem ti nĂŁo presta nada?
Responde SĂ­lvio:-Amor nĂŁo o consente,
que ofende as esperanças da tornada.

Aqueles Claros Olhos Que Chorando

Aqueles claros olhos que chorando
ficavam quando deles me partia,
agora que farĂŁo? Quem mo diria?
Se porventura estarĂŁo em mim cuidando?

Se terĂŁo na memĂłria, como ou quando
deles me vim tĂŁo longe de alegria?
Ou s’estarĂŁo aquele alegre dia
que torne a vĂȘ-los, n’alma figurando?

Se contarĂŁo as horas e os momentos?
Se acharĂŁo num momento muitos anos?
Se falarĂŁo co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos,
que, nesta ausĂȘncia, tĂŁo doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!

Dizei, Senhora, Da Beleza Ideia:

Dizei, Senhora, da Beleza ideia:
para fazerdes esse ĂĄureo crino,
onde fostes buscar esse ouro fino?
de que escondida mina ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz Febeia,
esse respeito, de um império dino?
Se o alcançastes com saber divino,
se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes
as perlas preciosas orientais
que, falando, mostrais no doce riso?

Pois vos formastes tal, como quisestes,
vigiai-vos de vĂłs, nĂŁo vos vejais,
fugi das fontes: lembre-vos Narciso.

Quem Vos Levou De Mim, Saudoso Estado

Quem vos levou de mim, saudoso estado,
que tanta sem-razĂŁo comigo usastes?
Quem foi, por quem tĂŁo presto me negastes,
esquecido de todo o bem passado?

Trocastes-me um descanso em um cuidado
tĂŁo duro, tĂŁo cruel, qual m’ordenastes;
a fé, que tínheis dado, me negastes,
quando mais nela estava confiado.

Vivia sem receio deste mal;
Fortuna, que tem tudo a sua mercĂȘ,
amor com desamor me revolveu.

Bem sei que neste caso nada val,
que quem naceu chorando, justo Ă©
que pague com chorar o que perdeu.

Pouco te Ama

Na metade do CĂ©u subido ardia
O claro, almo Pastor, quando deixavam
O verde pasto as cabras, e buscavam
A frescura suave da ĂĄgua fria.

Com a folha das ĂĄrvores, sombria,
Do raio ardente as aves se amparavam;
O mĂłdulo cantar, de que cessavam,
SĂł nas roucas cigarras se sentia.

Quando Liso Pastor, num campo verde,
Natércia, crua Ninfa, só buscava
Com mil suspiros tristes que derrama.

Porque te vĂĄs de quem por ti se perde,
Para quem pouco te ama? (suspirava)
E o eco lhe responde: Pouco te ama.

Quando nĂŁo te Vejo Perco o Siso

Formosura do CĂ©u a nĂłs descida,
Que nenhum coração deixas isento,
Satisfazendo a todo pensamento,
Sem que sejas de algum bem entendida;

Qual lĂ­ngua pode haver tĂŁo atrevida,
Que tenha de louvar-te atrevimento,
Pois a parte melhor do entendimento,
No menos que em ti hĂĄ se vĂȘ perdida?

Se em teu valor contemplo a menor parte,
Vendo que abre na terra um paraĂ­so,
Logo o engenho me falta, o espĂ­rito mĂ­ngua.

Mas o que mais me impede inda louvar-te,
É que quando te vejo perco a língua,
E quando nĂŁo te vejo perco o siso.

TĂŁo Conformes na Ventura

Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
Outras tantas de um ĂĄspero receio
Salteado Laurénio a cor perdia.

Ela, que a SĂ­lvio mais que a si queria,
Para podĂȘ-lo ver nĂŁo tinha meio.
Ora como curara o mal alheio
Quem o seu mal tĂŁo mal curar podia?

Ele, que viu tĂŁo clara esta verdade,
Com soluços dizia (que a espessura
Inclinavam, de mĂĄgoa, a piedade):

Como pode a desordem da natura
Fazer tĂŁo diferentes na vontade
Aos que fez tĂŁo conformes na ventura?

Lindo E Sutil Trançado, Que Ficaste

Lindo e sutil trançado, que ficaste
em penhor do remédio que mereço,
se só contigo, vendo te, endoudeço,
que fora cos cabelos que apertaste?

Aquelas tranças d’ouro, que ligaste,
que os raios do Sol tĂȘm em pouco preço,
não sei se para engano do que peço
se para me atar, os desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
e por satisfação de minhas dores
como quem nĂŁo tem outra, hei de tomar te.

E se nĂŁo for contente meu desejo,
dir lhe hei que, nesta regra dos amores,
pelo todo também se toma a parte.