Soneto XXXII
Quando a chuva cessava e um vento fino
franzia a tarde tĂmida e lavada,
eu saĂa a brincar, pela calçada,
nos meus tempos felizes de menino.Fazia, de papel, toda uma armada;
e, estendendo meu braço pequenino,
eu soltava os barquinhos, sem destino,
ao longo das sarjetas, na enxurrada…Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,
que nĂŁo sĂŁo barcos de ouro os meus ideais:
sĂŁo feitos de papel, sĂŁo como aqueles,perfeitamente, exatamente iguais…
– Que os meus barquinhos, lá se foram eles!
Foram-se embora e nĂŁo voltaram mais!
Sonetos sobre Papéis
8 resultadosMarĂlia De Dirceu
Soneto 5
Ao templo do Destino fui levado:
Sobre o altar num cofre se firmava,
Em cujo seio cada qual buscava,
Tremendo, anĂşncio do futuro estado.Tiro um papel e lio – cĂ©u sagrado,
Com quanta causa o coração pulsava!
Este duro decreto escrito estava
Com negra tinta pela mĂŁo do fado:“Adore Polidoro a bela Ormia,
sem dela conseguir a recompensa,
nem quebrar-lhe os grilhões a tirania.”Dar mĂŁos Amor mo arranca, e sem detença,
TrĂŞs vezes o levando Ă boca impia,
Jurou cumprir à risca a tal sentença.
Noiva
Ei-la toda de branco. Aos pés, o imenso véu
como em flocos de espuma, espalhado no chĂŁo…
No ar, dentro do olhar, cabe inteirinho um céu,
e leva um cĂ©u maior dentro do coração…Nos lábios… Ah! nos lábios o sabor do mel,
e uma carĂcia em flor se entreabre em cada mĂŁo,
– e que tremor no braço, ao deixar no papel
o nome dela, o dele… os dois desde entĂŁo…Quem lhe falou da vida ? A vida Ă© um sonho, a vida
é esse caminho azul, esse estranho embaraço
de sentir-se ao seu lado adorada e querida…Aos seus pĂ©s, como nuvem branca, o imenso vĂ©u…
Quem dirá, que ao seguir apoiada ao seu braço
nĂŁo pensa que caminha em direção ao cĂ©u ?…
Às Cambalhotas Sempre Anda a Través
Às cambalhotas sempre anda a través
O Mundo, sem poder-se endireitar.
Velho, bĂŞbado e tonto, a cambalear,
Já não pode suster-se sobre os pés.Tudo nele se vê hoje de invés
Pois seu eixo quebrou, anda a rolar
Não há homem que o possa consertar:
SĂł se for, do Arquitecto a mĂŁo que o fez.Tornou-se num piĂŁo: qualquer rapaz
O faz dar quatro voltas c’um cordel
E na palma da mão dançar o faz.O que hoje fez de grande o seu papel,
Amanhã representa de Gil Blás
Neste imenso teatro de Babel.
Dai À Obra De Marta Um Pouco De Maria
Dai Ă obra de Marta um pouco de Maria,
Dai um beijo de sol ao descuidado arbusto;
Vereis neste florir o tronco ereto e adusto,
E mais gosto achareis naquela e mais valia.A doce mĂŁe nĂŁo perde o seu papel augusto,
Nem o lar conjugal a perfeita harmonia.
ViverĂŁo dous aonde um atĂ© ‘qui vivia,
E o trabalho haverá menos difĂcil custo.Urge a vida encarar sem a mole apatia,
Ă“ mulher! Urge pĂ´r no gracioso busto,
Sob o tépido seio, um coração robusto.Nem erma escuridão, nem mal-aceso dia.
Basta um jorro de sol ao descuidado arbusto,
Basta Ă obra de Marta um pouco de Maria.
Picadeiro
Estava sossegado lá no fundo
Do meu eu e de mim sem muita pressa
Nesses momentos calmos que circundo
Roteiro e enredo em ato que começaMinha descida ao palco do meu mundo
Que venho e represento a farsa dessa
Comédia que é de arte em que aprofundo
A pena desgarrada em vĂŁ promessaDe bem cantar somente o mais fecundo
Sonho sonhado sem a dor expressa
Que a vida vai me dando num segundoO desempenho em tĂtere da peça
Neste papel de doce vagabundo
Que me faz rir da dor doĂda Ă beça.
O MartĂrio Do Artista
Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A Ăłrbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!Tarda-lhe a idéa! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do Ăşltimo momento!Tenta chorar e os olhos sente enxutos!…
É como o paralĂtico que, Ă mingua
Da prĂłpria voz e na que ardente o lavraFebre de em vĂŁo falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a lĂngua,
E nĂŁo lhe vem Ă boca uma palavra!
Horas Mortas
Breve momento apĂłs comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia.Desta janela aberta, Ă luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparĂŞncia azul da noite fria.Chegas. O Ăłsculo teu me vivifica
Mas é tão tarde! Rápido flutuas
Tornando logo à etérea imensidade;E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel – rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade.