Textos de Ana Hatherly

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Textos de Ana Hatherly. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

O Acto de Criar

Todos queremos ser amados, mas o artista quer sê-lo de uma maneira tão total, tão desalmada, que é impossível. Por isso cria. Mas o acto de criar tem muita lama: não é limpo, é mesmo um pouco sórdido, como nascer. O que oferecemos separa-se de nós. Como um segredo violado fica parecido com algo inefável ao ser tocado por uma impura mão.

O Império da Emoção

Às vezes penso: os nossos sentimentos são como uma espécie de esparguete em aço, em que cada segmento está totalmente imiscuído no todo mas ao mesmo tempo é distintamente apercebível. Outras vezes penso: não, os nossos sentimentos são como uma floresta de esparguete de aço em que cada segmento emerge só parcialmente distinto. Na ponta de cada uma dessas varas vibra uma formação algo rendilhada, consequência dos constantes tremores de cada segmento, e assim, quando alguém está sob o império de funda emoção, tudo nele treme e na floresta tudo vibra e essas extremidades rendilhadas formam rapidíssimos desenhos, imiscuindo-se uns nos outros, e o total é uma combinação de vibrações que se sobrepõem e explicam a confusão que se encontra no indivíduo sob o império da emoção.

Os Tentáculos da Escrita

Os tentáculos da escrita. A escrita é um polvo, um molusco versátil. Tem infinitos recursos. Escapa sempre. Abstractiza-se. Disfarça-se, adensa-se, adelgaça-se, esconde-se. Impele-se rápida. Compreende tudo: ascese, consolo íntimo, entrega; fluxos, refluxos, invasões, esvaziamentos, obstinação feroz. O seu rigor é místico. É uma infinita demanda. Perscruta o inaudito. Sideral Alice atravessa todas as portas, todos os espelhos. Cruza, descobre, inventa universos. A escrita é um fragmento do espanto, já alguém o disse.

A Memória é um Silêncio que Espera

O património do silêncio. Os livros acumulam-se pela casa. Cobrem as paredes, enchem as prateleiras dos armários. Aguardam-nos calados com suas páginas apertadas onde o pó e a humidade se infiltram. Disciplinados, exibem apenas o seu dorso curvo coberto de pele, ou então magro, estreito, de papel. A memória é um silêncio que espera, uma provação da paciência.

Criatividade Cega

Entre o caos e a harmonia. A cegueira pensada é uma aflição mental, uma das formas do isolamento porque a invisibilidade não é obstáculo: é apenas um fenómeno subtilíssimo da ausência. Na criação tudo é potencialmente uma entidade distinta da matéria, uma improbabilidade, porque, como diziam os antigos, diante da luz somos todos cegos.

Os Caçadores de Simulacros

O artista, o poeta, o escritor, os que perguntam: todos são caçadores de simulacros, incansáveis calculadores de improbabilidades. Pombas ou abutres, frágeis canários ou escondidos melros, raspam, rasgam, rompem, sempre roendo as suas próprias garras. O invisível que há neles então emerge.

Os Livros Estão Sempre Sós

Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam a sua fúria com a sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós.

Ambiguidade e Acção

A Mentira é a recriação de uma Verdade. O mentidor cria ou recria. Ou recreia. A fronteira entre estas duas palavras é ténue e delicada. Mas as fronteiras entre as palavras são todas ténues e delicadas.
Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo. O que não quer dizer que o jogo resulta sempre. Resulte seja o que for ou do que for.
A Ambiguidade é a Arte do Suspenso. Tudo o que está suspenso suspende ou equilibra. Ou instabiliza. Mas tudo é instável ou está suspenso.
Pelo menos ainda.
Ainda é uma questão de tempo. Tudo depende da noção de tempo ou duração ou extensão. A aceleração do tempo pode traduzir-se pela imobilidade pois que a imobilidade pode traduzir-se por um máximo de aceleração ou um mínimo de extensão: aceleração tão grande que já não se veja o movimento ou o espaço ou a duração.
Tudo está sempre a destruir tudo. Ou qualquer coisa. Ou alguém. Mas estamos sempre a destruir tudo ou qualquer coisa. Ou alguém.
Os construtores demolem. No lugar onde estava o sopro, pormos pedras ou palavras: sinónimo de construção. Ou destruição. Ou acção.

A Essência do Progresso

– Lá porque vivemos em erectos edifícios não quer dizer que não vivamos afinal em cavernas. De resto cada homem vive mergulhado na penumbra da caverna que ele próprio é. E somos todos primitivos porque como o futuro está constantemente a cumprir-se, para os que vierem depois de nós seremos sempre velhos, depois antigos e depois primitivos. A essência do progresso consiste no eterno insistir sobre um mesmo esquema.
– Mas que progresso é esse que se baseia na eterna repetição de si próprio?
– A descoberta gradual da permanência do esquema.

A Memória

A memória é essa claridade fictícia das sobreposições que se anulam. O significado é essa espécie de mapa das interpretações que se cruzam como cicatrizes de sucessivas pancadas. Os nossos sentimentos. A intensidade do sentir é intolerável. Do sentir ao sentido do sentido ao significado: o que resta é impacto que substitui impacto — eis a invenção.

Tempo e Experiência

A noção de experiência é complexa. Todo o espaço é de vidro – um vidro que não parte por fora mas parte por dentro. Estamos sempre a esbarrar com invisíveis barreiras. O que ele revela não é precisamente o que queremos saber. E se tivermos os olhos abertos até ao fim: vemos o quê? Como o espaço, o tempo não revela nada de especial. Só percursos. Folhas de uma agenda descartável. A curva da vida de que fala Homero revela que a nossa existência é uma rápida passagem pelo mundo em efeito Doppler.

O Isolamento do Criador

Há uma sensação de infidelidade na comunicação. Essa verificação faz com que o criador esteja sempre insatisfeito, dominado pelo desejo de fazer cada vez melhor, porque há um fracasso imanente em toda a criação. Essa verificação pode levar a uma tentativa interminável ou ao isolamento pelo silêncio. Mas para o criador o isolamento é a sua oficina.

A Evolução Opaca do Ser

Muitas vezes os seres são claros e translúcidos por serem primários e à medida que vão evoluindo é que se vão tornando opacos. Pensemos. Talvez seja isto: à medida que mais evoluindo vamos é que vão sendo precisos olhos mais penetrantes para se poder distinguir a qualidade de um ser. Então não será só à luz do sol que se deverá considerar a limpidez ou a translucidez do corpo de um ser mas à luz de outros princípios luminosos. (…) Aqui a razão precisava de ter evoluído paralelamente aos olhos, ora os nossos olhos vão de encontro aos seres como de encontro a um muro.

A Intrepidez do Pensamento

Convém cultivar com coragem a intrepidez na raiz do pensamento: que cada um se coloque diante de si energicamente como diante dum estrangeiro e quando atingir o limite do suportável, o momento em que é preciso tomar uma decisão total, então compreenderá que a situação limite que conduz ao crime é a insuportabilidade da traição. Dormitam em todo o homem estas faculdades.

O Bom Orador

Há pessoas a quem certas palavras dos outros lhes fazem morrer as próprias na garganta. Não podendo falar sentam-se do lado de cá do mar e olham a outra margem não podendo lá estar embora pudessem. Eis como os possessos de realidades violentas não podem sentar-se à mesa e discorrer simplesmente o que já seria imenso e excepcional.

A Procura da Sabedoria

Era uma vez uma pessoa que procurava a sabedoria. Tinham-lhe dito que para a atingir tinha sempre de aceitar e recusar ao mesmo tempo tudo o que lhe fosse oferecido, dito ou mostrado. Quando perguntava por onde era o melhor caminho e lhe diziam «é por ali» ela devia seguir imediatamente nesse sentido e depois no sentido contrário. Tendo assim percorrido todas as direcções indicadas e as não indicadas, sem mais caminhos a percorrer, sentou-se no chão e começou a chorar. Sem saber, tinha chegado.