Textos sobre Assunto de José Luís Peixoto

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Textos de assunto de José Luís Peixoto. Leia este e outros textos de José Luís Peixoto em Poetris.

Tive um Cavalo de CartĂŁo

Mulher. A tua pele branca foi um verão que quis viver e me foi negado. Um caminho que não me enganou. Enganou-me a luz e os olhos foscos das manhãs revividas. Enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui, a correr pelos campos todo o dia, a medir as searas pelo tamanho dos braços abertos; enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui no teu homem e no teu rosto, no teu filho, nosso. Não hå manhãs para reviver, sei-o hoje. Não se podem construir dias novos sobre manhãs que se recordam. Inventei-te talvez, partindo de uma estrela como todas estas. Quis ter uma estrela e dar-lhe as manhãs de julho. As grandes manhãs de julho diante de casa e a minha mãe a acabar o almoço bom e o meu pai a chegar e a ralhar, sem ser a sério, por o almoço não estar pronto e eu sentado na terra, talvez a fazer um barroco, talvez a brincar com o cavalo de cartão. Tive um cavalo de cartão. Nunca te contei, pouco te contei, mas tive um cavalo de cartão. Brincava com ele e era bonito. Gostava muito dele. Tanto. Tanto. Tanto. Quando o meu pai mo trouxe,

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Os Professores

O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegåmos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.

O material que Ă© trabalhado pelos professores nĂŁo pode ser quantificado. NĂŁo hĂĄ nĂșmeros ou casas decimais com suficiente precisĂŁo para medi-lo. A falta de quantificação nĂŁo Ă© culpa dos assuntos inquantificĂĄveis, Ă© culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores nĂŁo vendem o material que trabalham, oferecem-no. NĂłs, com o tempo, com os anos, com a distĂąncia entre nĂłs e nĂłs, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material Ă© nosso, achamos que nĂłs prĂłprios somos esse material. Por ironia ou capricho, Ă© nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva.

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A Voz que Ouço quando Leio

Quando leio, hĂĄ uma voz que lĂȘ dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas nĂŁo acredito que seja o meu olhar que lĂȘ. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lĂȘ. Quando Ă© sĂ©ria, ouço-a falar-me de assuntos sĂ©rios. Às vezes, sussurra-me. Às vezes, grita-me. Essa voz nĂŁo Ă© a minha voz. NĂŁo Ă© a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lĂĄbios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, nĂŁo me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas nĂŁo Ă© minha. NĂŁo Ă© a voz dos meus pensamentos. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas Ă© exterior a mim. É diferente de mim. Ainda assim, nĂŁo acredito que alguĂ©m possa ter uma voz que lĂȘ igual Ă  minha, por isso Ă© minha mas nĂŁo Ă© minha. Mas, claro, nĂŁo posso ter a certeza absoluta. NĂŁo sĂł porque uma voz Ă© indescritĂ­vel, mas tambĂ©m porque nunca ninguĂ©m me tentou descrever a voz que ouve quando lĂȘ e porque eu nunca falei com ninguĂ©m da voz que ouço quando leio.

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