Escuta, Amor
Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos årvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as årvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as årvores acreditam que são feitas de terra.
Por isto e por mais do que isto, tu estĂĄs aĂ e eu, aqui, tambĂ©m estou aĂ. Existimos no mesmo sĂtio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos sĂł podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu Ă©s aquilo que sei sobre a ternura. Tu Ă©s tudo aquilo que sei. Mesmo quando nĂŁo estavas lĂĄ, mesmo quando eu nĂŁo estava lĂĄ, aprendĂamos o suficiente para o instante em que nos encontrĂĄmos.
Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti,
Textos sobre Completos de JosĂ© LuĂs Peixoto
3 resultadosO Absoluto Ă© um Fardo InsuportĂĄvel
Para oferecer conforto rudimentar, retirei peso às palavras e às açÔes.
O conhecimento completo emudece as palavras e tolhe as açÔes.
O absoluto Ă© um fardo insuportĂĄvel.
A irresponsabilidade faz tanta falta como a responsabilidade, cada uma tem a sua hora,
os sĂĄbios usam-nas ao mesmo tempo, mais de uma ou mais de outra, tanto de uma como de outra,
os såbios conseguem distinguir as ocasiÔes e as medidas,
e nĂŁo duvidam que precisam de uma e de outra.
Uma Mentira
Uma mentira, fina como um cabelo, perturba para sempre a ordem do mundo. Aquilo que sabemos tem muita importĂąncia. Tomamos decisĂ”es, vamos por aqui ou por ali, consoante aquilo que sabemos. E tudo o que virĂĄ a seguir, o futuro atĂ© ao fim dos tempos, serĂĄ diferente se formos por um lado em vez de irmos por outro. Nascem pessoas devido a insignificĂąncias, morrem pessoas pelo mesmo motivo. Uma pessoa Ă© uma mĂĄquina de coisas a acontecer, possibilidades multiplicadas por possibilidades em todos os instantes do seu tempo. Uma mentira, mesmo que transparente, perturba o entendimento que os outros tĂȘm da realidade, leva-os a acreditar que Ă© aquilo que nĂŁo Ă©. Essa poluição vai turvar-lhes a lĂłgica do mundo. As conclusĂ”es a que forem capazes de chegar serĂŁo calculadas a partir de um dado falso e, desse ponto em diante, todas as contas serĂŁo multiplicaçÔes de erros. Uma mentira baralha tudo aquilo em que toca, desequilibra o mundo. Ă por isso que uma mentira precisa sempre de mentiras novas para se suster. O mundo nĂŁo lhe dĂĄ cobertura. Para alcançar coerĂȘncia, cada mentira requer a criação apressada de um mundo de mentira que a suporte. Ă assim que a mentira vai avançando pela verdade adentro,