Textos sobre Criação de Vergílio Ferreira

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Textos de criação de Vergílio Ferreira. Leia este e outros textos de Vergílio Ferreira em Poetris.

O Homem e a Máquina

À técnica seria absurdo que a recusássemos, lhe recusássemos a espantosa facilitação da vida, por mais que a essa vida ela perturbe – como aos seus doutrinadores. Uma máquina é pura, desde a inocência com que se nos revela, ou seja precisamente a exterioridade em que se nos dá. Mas uma inocência é uma abertura à realização do que o não é. O destino de uma máquina tem o destino que lhe dermos, e um dos piores é o finalizá-la nela própria. Assim e para lá da criação do seu próprio espaço, por uma máquina, da alteração que a sua própria existência em nós promove, todo o problema se decide no lugar-comum desta alternativa: remeter a máquina ao homem ou degradar o homem à máquina.

O Artista é Maior que Deus

Como é bom escrever ao apelo incerto do que nos faz sinais. Como é fascinante escrever para saber o que é. Indeciso apelo, motivo que o não é, até se saber o que é. Trazê-lo à vida da sua nebulosa, captá-la na errância de uma inquieta procura. Obedecer ao impulso que sobe em nós em energia e movimentação, na necessidade de o realizar e ele coalhar em escrita, no irreal da sua realização. Estremecer ao aviso, persegui-lo até onde não sabemos o seu tudo, depois da surpresa do que lá estava.
Escrever é não saber para saber. Mas o que se sabe é frágil e há que procurá-lo até à eternidade. Porque o que se encontra é ainda a procura, o além de todo o aquém. E é porque nunca se encontra, que a arte continua. Assim o artista é maior do que Deus. Porque ele já tinha criado, antes de criar, e assim não teve surpresas. E quem escreve só no infinito realiza a sua criação e só aí as não terá.

O Que Procuro na Literatura

Que é que eu procuro na literatura? Que é que me arrasta para este combate interminável e sempre votado ao fracasso? Como é imbecil pensar-se que se escreve para se «ter nome» e as vantagens que nisso vêm. Espera-se decerto sempre fazer melhor, mas só porque sempre se falhou. Assim se sabe também que se vai falhar de novo. Não se escreve para ninguém, o problema decide-se apenas entre nós e nós. Mas há um lugar inatingível e cada nova tentativa é uma tentativa para o alcançar.
O desejo que nos anima é o de fixar, segurar pela palavra o que entrevemos e se nos furta. Julgamos às vezes que o atingimos, mas logo se sabe que não. Miragem perene de uma presença luminosa, de um absoluto de estarmos inundados dessa evidência, encantamento que nos deslumbra no instante e nesse instante se dissolve.
O que me arrasta nesta luta sem fim é o aceno de uma plenitude de ser, a integração perfeita do que sou no milagre que me entreluz, a transfiguração de mim e do mundo no que fulgura e vai morrer.
Recaído de cada vez no mais baixo, na grossa naturalidade de que sou feito,

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A Primeira Palavra que em Toda a Minha Vida me Esgotou o Ser

Uma palavra. Disse-a. Amo-te – uma palavra breve. Quantos milhões de palavras eu disse durante a vida. E ouvi. E pensei. Tudo se desfez. Palavras sem inteira significação em si, o professor devia ter razão. Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas às outras para se aguentarem na sua rede aérea de sons. Mas houve uma palavra – meu Deus. Uma palavra que eu disse e repercutiu em ti, palavra cheia, quente de sangue, palavra vinda das vísceras, da minha vida inteira, do universo que nela se conglomerava, palavra total. Todas as outras palavras estavam a mais e dispensavam-se e eram uma articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a parte mecânica de mim, a parte frágil e vã. Palavra absoluta no entendimento profundo do meu olhar no teu, palavra infinita como o verbo divino. Recordo-a agora – onde está? Como se desfez? Ou não desfez mas se alterou e resfriou e absorveu apenas a fracção de mim onde estava a ternura triste, o conforto humilde, a compaixão. Não haverá então uma palavra que perdure e me exprima todo para a vida inteira? E não deixe de mim um recanto oculto que não venha à sua chamada e vibre nela desde os mais finos filamentos de si?

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