A Vida OblĂqua
SĂł agora pressenti o oblĂquo da vida. Antes sĂł via atravĂ©s de cortes retos e paralelos. NĂŁo percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida Ă© outra. Que viver nĂŁo Ă© sĂł desenrolar sentimentos grossos â Ă© algo mais sortilĂ©gico e mais grĂĄcil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existĂȘncia feneça no que tem de oblĂquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e nĂŁo existe nisso contradição.
A vida oblĂqua Ă© muito Ăntima. NĂŁo digo mais sobre essa intimidade para nĂŁo ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblĂquo na sua independĂȘncia desenvolta.
E conheço tambĂ©m um modo de vida que Ă© suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contĂnua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excĂȘntrica. Tem um lado da vida que Ă© como no inverno tomar cafĂ© num terraço dentro da friagem e aconchegada na lĂŁ.
Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante,
Textos sobre Fogo de Clarice Lispector
3 resultadosVou Voltar para Mim Mesma
Minha vida Ă© um grande desastre. Ă um desencontro cruel, Ă© uma casa vazia. Mas tem um cachorro dentro latindo. E eu â sĂł me resta latir para Deus. Vou voltar para mim mesma. Ă lĂĄ que eu encontro uma menina morta sem pecĂșlio. Mas uma noite vou Ă Secção de Cadastro e ponho fogo em tudo e nas identidades das pessoas sem pecĂșlio. E sĂł entĂŁo fico tĂŁo autĂłnoma que sĂł pararei de escrever depois de morrer. Mas Ă© inĂștil, o lago azul da eternidade nĂŁo pega fogo. Eu Ă© que me incineraria atĂ© meus ossos. Virarei nĂșmero e pĂł. Que assim seja. AmĂ©n. Mas protesto. Protesto Ă toa como um cĂŁo na eternidade da Seção de Cadastro.
Quantas Vezes a InsĂłnia Ă© um Dom
Mas quantas vezes a insĂłnia Ă© um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidĂŁo. Quase nenhum ruĂdo. SĂł o das ondas do mar batendo na praia. E tomo cafĂ© com gosto, toda sozinha no mundo. NinguĂ©m me interrompe o nada. Ă um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque sĂșbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol Ă s vezes pĂĄlido como uma lua, Ă s vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar Ă© meu, o sol Ă© meu, a terra Ă© minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. AtĂ© que, como o sol subindo, a casa vai acordando e hĂĄ o reencontro com meus filhos sonolentos.