Textos sobre Fogo de Clarice Lispector

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Textos de fogo de Clarice Lispector. Leia este e outros textos de Clarice Lispector em Poetris.

A Vida OblĂ­qua

SĂł agora pressenti o oblĂ­quo da vida. Antes sĂł via atravĂ©s de cortes retos e paralelos. NĂŁo percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida Ă© outra. Que viver nĂŁo Ă© sĂł desenrolar sentimentos grossos — Ă© algo mais sortilĂ©gico e mais grĂĄcil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existĂȘncia feneça no que tem de oblĂ­quo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e nĂŁo existe nisso contradição.

A vida oblĂ­qua Ă© muito Ă­ntima. NĂŁo digo mais sobre essa intimidade para nĂŁo ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblĂ­quo na sua independĂȘncia desenvolta.
E conheço tambĂ©m um modo de vida que Ă© suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contĂ­nua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excĂȘntrica. Tem um lado da vida que Ă© como no inverno tomar cafĂ© num terraço dentro da friagem e aconchegada na lĂŁ.
Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante,

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Vou Voltar para Mim Mesma

Minha vida Ă© um grande desastre. É um desencontro cruel, Ă© uma casa vazia. Mas tem um cachorro dentro latindo. E eu — sĂł me resta latir para Deus. Vou voltar para mim mesma. É lĂĄ que eu encontro uma menina morta sem pecĂșlio. Mas uma noite vou Ă  Secção de Cadastro e ponho fogo em tudo e nas identidades das pessoas sem pecĂșlio. E sĂł entĂŁo fico tĂŁo autĂłnoma que sĂł pararei de escrever depois de morrer. Mas Ă© inĂștil, o lago azul da eternidade nĂŁo pega fogo. Eu Ă© que me incineraria atĂ© meus ossos. Virarei nĂșmero e pĂł. Que assim seja. AmĂ©n. Mas protesto. Protesto Ă  toa como um cĂŁo na eternidade da Seção de Cadastro.

Quantas Vezes a InsĂłnia Ă© um Dom

Mas quantas vezes a insĂłnia Ă© um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidĂŁo. Quase nenhum ruĂ­do. SĂł o das ondas do mar batendo na praia. E tomo cafĂ© com gosto, toda sozinha no mundo. NinguĂ©m me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque sĂșbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol Ă s vezes pĂĄlido como uma lua, Ă s vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar Ă© meu, o sol Ă© meu, a terra Ă© minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. AtĂ© que, como o sol subindo, a casa vai acordando e hĂĄ o reencontro com meus filhos sonolentos.