Textos sobre Gosto de Clarice Lispector

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Textos de gosto de Clarice Lispector. Leia este e outros textos de Clarice Lispector em Poetris.

NĂŁo Sei Dizer quem Sou

É curioso como nĂŁo sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas nĂŁo posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar nĂŁo sĂł nĂŁo exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir nĂŁo Ă© o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressĂŁo está alojada na parte alta do cĂ©rebro, nos lábios — na lĂ­ngua principalmente —, na superfĂ­cie dos braços e tambĂ©m correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu nĂŁo sei dizer. O gosto Ă© cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços velhos um pouco azulado, e move–se como gelatina, vagarosamente. As vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo. Muito bem, agora pensar em cĂ©u azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo? NĂŁo, nĂŁo passo bem. Pois ninguĂ©m se faz essas perguntas e eu… Mas Ă© que basta silenciar para sĂł enxergar, abaixo de todas as realidades, a Ăşnica irredutĂ­vel, a da existĂŞncia. E abaixo de todas as dĂşvidas — o estudo cromático — sei que tudo Ă© perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a si mesmo.

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Respeito Muito o Homem que Chora

Há um tipo de choro bom e há outro ruim. O ruim Ă© aquele em que as lágrimas correm sem parar e, no entanto, nĂŁo dĂŁo alĂ­vio. SĂł esgotam e exaurem. Uma amiga perguntou-me, entĂŁo, se nĂŁo seria esse choro como o de uma criança com a angĂşstia da fome. Era. Quando se está perto desse tipo de choro, Ă© melhor procurar conter–se: nĂŁo vai adiantar. É melhor tentar fazer-se de forte, e enfrentar. É difĂ­cil, mas ainda menos do que ir-se tornando exangue a ponto de empalidecer.
Mas nem sempre é necessário tornar-se forte. Temos que respeitar a nossa fraqueza. Então, são lágrimas suaves, de uma tristeza legítima à qual temos direito. Elas correm devagar e quando passam pelos lábios sente-se aquele gosto salgado, límpido, produto de nossa dor mais profunda.
Homem chorar comove. Ele, o lutador, reconheceu sua luta às vezes inútil. Respeito muito o homem que chora. Eu já vi homem chorar.

Saber que se Vive Ă© Coragem

Às vezes, olhando um instantâneo tirado numa praia ou numa festa, percebia com leve apreensão irónica o que aquele rosto sorridente e escurecido me revelava: um silêncio. Um silêncio e um destinho que me escapavam, eu, fragmento hieroglífico de um império morto ou vivo. Ao olhar o retrato eu via o mistério. Não. Não vou perder o resto do medo do mau gosto, vou começar meu exercício de coragem, viver não é coragem, saber que se vive é coragem – e vou dizer que na minha fotografia eu via O Mistério.

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Quantas Vezes a InsĂłnia Ă© um Dom

Mas quantas vezes a insónia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos.