O Povo está Divorciado da Cultura
O povo está divorciado da cultura, e encolhe-se cada vez mais na sua fome e na sua ignorância. Somos nĂłs, os que saĂmos dele e o queremos verdadeiramente servir, que temos o dever de o procurar, de o esclarecer, de o interessar activamente na sua prĂłpria salvação. Que lhe importam os grandes livros, se ele os nĂŁo pode nem sequer ler? Que lhe importam as grandes sinfonias, se ele as nĂŁo sabe ouvir? Ă© urgente chamar o povo Ă realidade nacional. É preciso interessá-lo de verdade no processo social, onde ele tem o Ăşnico papel que conta.
— Para isso?…
— Convidá-lo desde já a votar livre e claramente. Chamá-lo a determinar-se, a escolher os seus homens, a responsabilizar-se no seu destino,
— Esse destino Ă©?…
— O destino de todos os corpos vivos: crescer, multiplicar-se, procurar a felicidade, e deixar no seu caminho uma nĂtida e aberta marca de compreensĂŁo e de amor.
Textos sobre Ignorância de Miguel Torga
2 resultadosVivemos numa Paz de Animais Domésticos
Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha.
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razĂŁo acode, e o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os preceptores nos explicaram já quantas espĂ©cies de ofĂdios existem e o soro que neutraliza a mordedura de cada um. Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que nĂŁo devemos comer e as feras que nos nĂŁo podem devorar. Vivemos numa paz de animais domĂ©sticos, vacinados, com os dentes caninos a trincar pastĂ©is de nata, tendo aos pĂ©s, submissos, os antigos pesadelos da nossa ignorância. Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoolĂłgicos e botânicos ver, pacata e sĂ biamente, em jaulas e canteiros, o que já foi perigo e mistĂ©rio. E, por mais que nos custe, nĂŁo conseguimos captar a alma do brinquedo esventrado. O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que era bravo,