O Homem Amesquinhado
Apesar do quadro negro de uma cĂşpula polĂtica e intelectual desvairada e grossa e de um povo abandonado a seu prĂłprio destino, ainda havia ali, no paĂs, naquele espantoso verĂŁo de 1955, uma considerável energia vital, uma exaltada alegria de viver, acentuada, em alguns lugares e num ou noutro indivĂduo, ainda mais possuĂdo do gozo pleno de um extraodinário senso lĂşdico tropical. Estávamos, poderĂamos nos considerar como estando, num dos Ăşltimos redutos do ser humano. Depois disso viria o fim, nĂŁo, como todos pensavam, com um estrondo, mas com um soluço. A densa nuvem desceria, nĂŁo, como todos pensavam, feita de molĂ©culas radioativas, mas da grosseria de todos os dias, acumulada, aumentada, transmitida, potenciada. O homem se amesquinharia, vĂtima da mesquinharia do seu semelhante, cada dia menos atento a um gesto de gentileza, a um ato de beleza, a um olhar de amor desinteressado, a uma palavra dita com uma precisa propriedade. E tudo começou a ficar densamente escuro, porque tudo era terrivelmente patrocinado por enlatadores de banha, fabricantes de chouriço e vendedores de desodorante, de modo que toda a pretensa graça da vida se dirigia apenas Ă barriga dos gordos, Ă tripa dos porcos, ou, no máximo de finura e elegância,
Textos sobre PolĂtica de MillĂ´r Fernandes
2 resultadosPensar Custa
Pensar Ă© a todo momento e a todo custo. Pensar dĂłi, cansa e sĂł traz aborrecimentos. Melhor Ă© nĂŁo pensar. Mas pensar nĂŁo Ă© facultativo. Se o cĂ©rebro, a mĂnima parte dele que seja, deixa de estar alerta por um momento, penetram lá, como parasitas difĂceis de erradicar, «ideias» vindas da imprensa, do rádio, da televisĂŁo, da propaganda geral, dos produtos em sĂ©rie, do consumo degenerado, dos doutores em lei, arte, literatura, ciĂŞncia, polĂtica, sociologia. Essa massa de desinformação, nĂŁo sĂł inĂştil como nociva, nos Ă©, aliás, imposta de maneira criminosa nos primeiros anos de nossa vida. E se, algum dia, chegamos a pensar no verdadeiro sentido do termo, todo o restante esforço da existĂŞncia Ă© para nos livrarmos de uma lamentável herança cultural. Pois, infelizmente, o cĂ©rebro humano Ă© um dos poucos ĂłrgĂŁos do corpo que nĂŁo tĂŞm uma válvula excretora. E as fezes culturais ficam lá, nos envenenando pelo resto da vida, transformando o mais complexo e mais nobre ĂłrgĂŁo do corpo numa imensa fossa, imunda e fedorenta. Um lamentável erro da Criação.