Textos sobre Trabalho de José Luís Peixoto

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Textos de trabalho de José Luís Peixoto. Leia este e outros textos de José Luís Peixoto em Poetris.

O Outono da Vida

Começa devagarinho. É como tudo. A gente andamos na nossa vida, andamos influídos e está claro que não reparamos. De manhã, temos de pensar no café.
Depois, há-de vir o almoço. Está claro que nem reparamos numa aragem. Mal uma aragem mais fresca que se mistura com o sol-pĂ´r. Já setembro quer acabar e ainda temos a torrina do sol na pele, a hora do calor, (quase cansada, para a cadela invisĂ­vel) Anda cá, Ladina… TambĂ©m estás a ficar velha… Arriba, cadela… (voltando ao tom e Ă  direcção inicial) A gente nem dá fĂ©. Primeiro, Ă© umas pontadas nas costas, umas sezões, umas coisas assim. Primeiro, a gente julga que vai passar, como passavam os esfolões nas pernas quando Ă©ramos pequenos e andávamos a correr pelas ruas ou quando encontrávamos alguma árvore a jeito de subir. Começa mesmo devagarinho. Aos poucos, (com ternura, para a cadela) Ah, Ladina… Bochinha, bochinha… EntĂŁo, nĂŁo queres vir? Anda cá, cadela… (voltando Ă  direcção inicial) E as mĂŁos começam a tremer um bocadinho. E o trabalho começa a ser mais custoso. E um dia a gente já quase que nĂŁo conhece a nossa cara no espelho no lavatĂłrio. É nesse dia, Ă© nessa hora que começa o outono.

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Os Professores

O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.

O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva.

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A Leitura Depara-se com uma Série de Obstáculos

A leitura depara-se com uma série de obstáculos, é muito mais fácil sentarmo-nos no sofá a ver televisão do que a ler um jornal até. E a questão parece ser esta sociedade de facilistismo em que deixou de se perceber que as coisas que dão algum trabalho também são as que dão mais prazer, porque são conquistadas. A leitura dá algum trabalho e temos de conquistar um espaço para ela na nossa vida, temos de nos empenhar para absorvê-la completamente, para que faça sentido. Isso é que se perdeu um pouco de vista, mas penso que quem procura acabará por encontrar e tenho esperança de que as pessoas não deixem de procurar, não desistam, porque baixar os braços é ficar sempre no mesmo sítio.

Luta de Classes

Não contem comigo para defender o elitismo cultural. Pelo contrário, contem comigo para rebentar cada detalhe do seu preconceito.
A cultura é usada como símbolo de status por alguns, alfinete de lapela, botão de punho. A raridade é condição indispensável desse exibicionismo. Só pertencendo a poucos se pode ostentar como diferenciadora. Essa colecção de símbolos é descrita com pronúncia mais ou menos afectada e tem o objectivo de definir socialmente quem a enumera.
Para esses indivĂ­duos raros, a cultura Ă© caracterizada por aqueles que a consomem. Assim, convĂ©m nĂŁo haver misturas. Conheço melhor o mundo da leitura, por isso, tomo-o como exemplo: se, no inĂ­cio da madrugada, uma dessas mulheres que acorda cedo e faz limpeza em escritĂłrios for vista a ler um determinado livro nos transportes pĂşblicos, os snobs que assistam a essa imagem sĂŁo capazes de enjeitá-lo na hora. ComeçarĂŁo a definir essa obra como “leitura de empregadas de limpeza” (com muita probabilidade utilizarĂŁo um sinĂłnimo mais depreciativo para descrevĂŞ-las).
Este exemplo aplica-se em qualquer outra área cultural que possa chegar a muita gente: mĂşsica, cinema, televisĂŁo, etc. Aquilo que mais surpreende Ă© que estes “argumentos”, esta forma de falar e de pensar seja utilizada em meios supostamente culturais por indivĂ­duos supostamente cultos,

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