Passagens de Anibal Beça

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Para Que Serve A Poesia?

De servir-se utensĂ­lio dia a dia
utilidade prática aplicada,
o nada sobre o nada anula o nada
por desvendar mistério na magia.

O sonho em fantasia iluminada
aqui se oferta em mĂłdica quantia
por camelĂ´s de palavras aladas
marreteiros de mansa mercancia.

De pagamento, apenas um sorriso
de nuvens, uma fatia de grama
de orvalho e o fugaz fulgor de astro arisco.
Serena sentença em sina servida,

seu valor se aquilata e se esparrama
na livre chama acesa de quem ama.

Cantares Bacantes (I)

O mar lava a concha cava
e cava concha lava o mar
como a lĂ­ngua limpa lava
tua concha antes de amar.

DelĂ­rio da estrela d’alva
mistério da preamar
vinda e volta abrindo a aldrava
da concha do paladar.

Oh minhas parcas de mel!
Eu me afogo em mar vinho
Ă  espera de algum batel.

Sou cantador de cordel:
estĂłrias sabor marinho
bacantes da moscatel.

Presença

SĂł saberei de ti pelos teus olhos,
que falam mais que a tua fala pouca.
Doce memĂłria (irei buscar-te sempre)
encilhada a essa égua dos minutos,

onde os ponteiros trotam meus desejos,
avivando a paisagem na lembrança
vinda de ti, e em mim reconstruĂ­da.
Essa presença, em passos e pegadas,

passeia no meu corpo, agora estrada,
caminho teu; submisso, eis meu segredo.
Que abrigar teus pés, possa, novamente,

o meu sereno peito fatigado.
Este que anseia teu corpo presente
olho no olho na véspera do gozo.

Uma Palavra

Meu canto busca sempre uma palavra
que seja companheira na canção
da minha voz que canta e se declara:
viver a vida inteira de emoção.

Uma palavra sĂł nĂŁo se prepara
puxando outra palavra sem razĂŁo
na vida que se encanta e se dispara
no claro tiro cego de paixĂŁo.

Viver a arte que procura ver
os lábios desbotados da linguagem
deixando a claridade me envolver

no sopro que me leva na paisagem
amaciando a pena ao escrever
teu nome, meu amor, minha viagem

Ars De Eros

Enquanto vias vi fĂ´rmas e formas
mas sabia que vinhas ver os versos
depois de veres várias folhas mortas
desse outono jardim nosso em regressos.

NĂŁo adianta rosnar pantera morna
o tempo rasga sempre um vento espesso
embora nĂŁo queiramos ser da horta
estrume de um adubo tĂŁo perverso,

E nĂŁo me venha viĂşva simbolista
reclamar dos poemas tĂŁo transgressos
pois te mostro a visĂŁo livre e anarquista.

Se Ă© para ver que venha entĂŁo diverso
o modo de te amar mais tribalista
que morro nesse clĂ­max dos possessos.

Soneto Para EugĂŞnia

O tempo que te alonga todo dia
é duração que colhes na paisagem,
tĂŁo distante e tĂŁo perto em ventania,
sitiando limites na viagem.

Desse mar que se afasta em maresia
o vago em teu olhar se faz aragem
nas vagas que se vĂŁo em vaga via
vigia de teus pés no vão das margens.

E o fio da teia vai fugindo fosco,
irreparável névoa pressentida
nos livros que nĂŁo leste, nesses poucos

momentos que sobravam da medida.
AngĂşstia de ponteiros, sol deposto,
no tédio das desoras foge a vida.

Vida que bem mereces por inteiro,
e Ă© pouca a que te dou de companheiro.

Toda Palavra

Toda palavra voa nebulosa
até chegar latente ao nosso chão.
Pousa sem pressa ou prece em mansa prosa
caĂ­da chuva breve de verĂŁo.

Toda palavra se abre generosa
para abrigar segredos num porĂŁo
lá onde sobram sombras sinuosas
levantando a poeira no perdĂŁo.

Toda palavra veste-se vistosa
para fazer afagos na paixĂŁo
uma pantera em paz, porém tinhosa.

Toda palavra enfim Ă© explosĂŁo
que o mundo sĂł Ă© mundo por osmose
pois há um outro ser no coração

Toada Para Solo De Ocarina

Fio tênue do céu em claridade
tece esse manto gris meu agasalho
colhido pelos muros da cidade:
mucosa verde musgo que se espalha

como tapete denso em chĂŁo de jade
Meus pés de crivo cravam esse atalho
riscando seu grafite no mar que arde
o fogo-de-santelmo em céu talhado

Nesse caminho caio em minha sina
caio no mar que lava essa lavoura
num barco ébrio que sempre desafina

E colho o sal da noite a lua moura
crescente luz de foice me assassina
e me morro no haxixe com Rimbaud

Czardas Para Serrotes Com Arcos De Violino E Berimbau De Lata

Esta anábase é de hora aberta desnudada
tĂŁo desmedida como foi a minha vida
de nada me arrependo apenas me perdĂ´o
por que meu vĂ´o nem sequer se iniciou

E dessas nuvens que me espaçam esgarçadas
trapos e cordas dissonantes dessa lira
sĂŁo acidentes de percurso em que recorro
como um ZenĂŁo o parafuso desse vĂ´o

Assim nessa colméia em ziper me percorro
como um zangão no zigue-zague nos hexágonos
ando Ă  procura de uma abelha desvairada

que me acompanhe na aventura pelos pântanos
exorcizando a desrazão desses escorços
essa nĂŁo-ave desgarrada do meu nada

Soneto Da Sentida SolidĂŁo

A falta Ă© complemento da saudade,
servida em larga ausĂŞncia nos ponteiros,
bandeja dos segundos que se evade,
em pasto das desoras, sorrateira.

Estar Ă© seduzir sem muito alarde,
no avaro aqui agora companheiro,
o porto da atenção que se me guarde
o ser presente da sanha viageira.

Partir Ă© sentimento de voltar,
liberta, eu sei, no vento e seu afoite,
navega a sina em rasa preamar;

ela, essa ausente, é dona e meu açoite,
no seu impulso presto em navegar,
vai se enfunando em névoa pela noite.

Soneto Ao Falso Fingidor

Há poeta que se ampara na velhice
como um cego que se apĂłia na bengala
tateando tristes trilhas da sandice
na claudicante fala que se entala.

Empalado nos versos da mesmice
seus poemas-burocratas cospem lágrimas
num chororô nostálgico em pieguice
Ă  procura de glĂłria em ante-salas.

Colhe, assim, as benesses oficiais,
prebendas, sinecuras, doutorados,
honorĂ­ficas causas e que tais.

Em vala rasa cala desolado
despindo-se do linho das vestais
para juntar-se ao sono de olvidados.