Soneto I – Leandro E Hero
O facho do Helesponto apaga o dia,
Sem que aos olhos de Hero o sono traga,
Que dentro de sua alma não se apaga
O fogo com que o facho se acendia.Aflita o seu Leandro ao mar pedia,
Que abrandado por ela, a prece afaga,
E traz-lhe o morto amante numa vaga,
(Talvez vaga de amor, inda que fria).Ao vê-lo pasma, e clama num transporte —
“Leandro!… és morto?!… Que destino infando
Te conduz aos meus braços desta sorte?!!Morreste!… mas… (e às ondas se arrojando
Assim termina já sorvendo a morte)
Hei de, mártir de amor, morrer te amando.”
Passagens sobre Vagas
199 resultadosO Dilúvio
Há muitos dias já, há já bem longas noites
que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais rábidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.Pradarias, vergéis, hortos, vinhedos, matos,
tudo desapar’ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.À flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leões bóiam agonizantes,
imprecando com fúria e angústia, erguem-se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.É aí que, ululando, os homens como as feras
refugiar-se vão em trágicos cardumes,
O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chão pobres velhos cansados.
e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
ouvem-se urros de dor, e os que vão adiante
lançam pedras brutais aos que ficam pra trás.
Evocação
Oh Lua voluptuosa e tentadora,
Ao mesmo tempo trágica e funesta,
Lua em fundo revolto de floresta
E de sonho de vaga embaladora.Langue visão mortal e sedutora,
Dos Vergéis sederais pálida giesta,
Divindade sutil da morna sesta
Da lasciva paixão fascinadora.Flor fria, flor algente, flor gelada
Do desconsolo e dos esquecimentos
E do anseio, da febre atormentada.Tu que soluças pelos céus nevoentos
Longo soluço mágico de fada,
Dá-me os teus doces acalentamentos!
Supremo Desejo
Eternas, imortais origens vivas
Da Luz, do Aroma, segredantes vozes
Do mar e luares de contemplativas,
Vagas visões volúpicas, velozes…Aladas alegrias sugestivas
De asa radiante e branca de albornozes,
Tribos gloriosas, fulgidas, altivas,
De condores e de águias e albatrozes…Espiritualizai nos Astros louros,
Do sol entre os clarões imorredouros
Toda esta dor que na minh’alma clama…Quero vê-la subir, ficar cantando
Na chama das Estrelas, dardejando
Nas luminosas sensações da chama.
Espaços em Branco
Ao fim da noite, no frio do táxi, pousas
a cabeça no meu ombro – e assim entramos
duma vez e inteiramente na nossa vida.
Lá fora, pelo contrário, tudo perde realidade;há em toda a parte um sossego abstracto,
as ruas parecem pintadas – betão entre
as árvores – numa tela baça. Vamos por lugares
que não reconheço, a minha geografia é vagae omissa como a dos velhos cartógrafos
que desenhavam um mundo cheio de espaços
em branco. É onde estamos agora, num
intervalo do mapa rente à primeira manhã –que será a nossa e também a última.
Perseverança
Não digas que o trabalho é desperdiçado,
Nem que o esforço falha ou parece, no fundo;
Não digas que aquele ao dever curvado
É um entre os tantos sonhos do mundo.Pois não é em vão que em golpes seguidos,
Com pressa medida, em fragor crescente,
O mar actua nos rochedos batidos
E invade a praia, ruidosamente.É certo que enfrentam suas investidas,
Do seu bater forte parecem troçar,
Esmagam com força as vagas erguidas
E em espuma fazem as ondas rasgar.Mas ele bate e bate com força
Em dias, semanas, em meses e anos,
Até que apareça mossa sobre mossa
Que mostre seus gastos, pacientes ganhos.E os anos passam, as gerações vão,
E menores se quedam as rochas cavadas;
Mas ele, com lenta e firme precisão,
Baterá na terra suas altas vagas.Certo como o sol e despercebido
Como duma árvore é o seu crescer,
Trabalha, trabalha sem ser iludido
P’la tenaz imagem que se pode ver.E quando o seu fim de todo obtém,
Em sonoro embate,
Na Leitura e na Escrita Encontramo-nos Todos naquilo que Temos de Mais Humano
A escrita, ou a arte, para ser mais abrangente, cumpre funções que mais nenhuma área consegue cumprir. (…) Sinto que há poucas experiências tão interessantes como quando se lê um livro e se percebe “já senti isto, mas nunca o tinha visto escrito”, procurar isso, ou procurar escrever textos que façam sentir isso, é uma das minhas buscas permanentes. Trata-se de ordenar, de esquematizar, não só sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga mas que entendemos melhor quando os vemos em palavras. Trata-se também de construir empatia: através da leitura temos oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que não fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber como é. E isso faz-nos ser mais humanos. Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano.
Quando Eu Sonhava
Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora, que estou desperto,
Agora a vejo fixar…
Para quê? – Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava – mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia …
Ao longo da maior parte do século XX, a emoção não foi digna de crédito nos laboratórios. Era demasiado subjectiva, dizia-se. Era demasiado fugidia e vaga. Estava no pólo oposto da razão, indubitavelmente a mais excelente capacidade humana, e a razão era encarada como totalmente independente da emoção…A emoção não era racional, e estudá-la também não era.
Crepúsculo
Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Batendo as asas leves, irisadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas
Como em dois lírios roxos e dolentes…E os lírios fecham… Meu Amor, não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saudades de doentes…O Silêncio abre as mãos… entorna rosas…
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando…E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente palpitando…
Já não Vivi, Só Penso
Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada:
de nuvens, de crepúsculos, de vento.Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.
Gonçalves Dias
(AO PÉ DO MAR)
SE EU PUDESSE cantar a grande história,
Que envolve ardente o teu viver brilhante…
Filho dos trópicos que – audaz gigante –
Desceste ao túmulo subindo à Glória!Teu túmulo colossal – nest’hora eu fito –
Altivo, rugidor, sonoro, extenso –
O mar!… e ……. O sim, teu crânio imenso
Só podia conter-se no infinito…E eu – sou louco talvez – mas quando, forte,
Em seu dorso resvala – ardente – norte,
E ele espumante estruge, brada, grita,E em cada vaga uma canção estoura…
Eu – creio ser tu’alma que, sonora,
Em seu seio sem fim – brava – palpita!
Exortação
Corpo crivado de sangrentas chagas,
Que atravessas o mundo soluçando,
Que as carnes vais ferindo e vais rasgando
Do fundo d’Ilusões velhas e vagas.Grande isolado das terrestres plagas,
Que vives as Esferas contemplando,
Braços erguidos, olhos no ar, olhando
A etérea chama das Conquistas magas.Se é de silêncio e sombra passageira,
De cinza, desengano e de poeira
Este mundo feroz que te condena,Embora ansiosamente, amargamente
Revela tudo o que tu’alma sente
Para ela então poder ficar serena!
Serenidade da Alma
Não examinar o que se passa na alma dos outros dificilmente fará o infortúnio de alguém; mas os que não seguem com atenção os movimentos das suas próprias almas são fatalmente desditosos.
(…) Ser semelhante ao promontório contra o qual vêm quebrar as vagas e que permanece firme enquanto, à sua volta, espumeja o furor das ondas.
– Que desgraça ter-me acontecido isto!
Não, não é assim que se deve falar, mas desta maneira:
– Que felicidade, apesar do que me aconteceu, eu não me mortificar, não me deixar abater pelo presente nem me assustar pelo futuro!
Na verdade, coisa idêntica poderia suceder a toda a gente, mas bem poucos a suportariam sem se mortificarem. Por que razão considerar este acontecimento infortunado e aquele outro feliz?
Em resumo, chamas de infortúnio para o ser humano aquilo que não é um obstáculo à sua natureza? E consideras um obstáculo à natureza do ser humano aquilo que não vai contra a vontade da sua natureza? Que queres, então? Conheces bem essa vontade; aquilo que te sucede impede-te, por acaso, de ser justo, magnânimo, sóbrio, reflectido, prudente, sincero, modesto, livre, e de possuir as outras virtudes cuja posse assegura à natureza do ser humano a felicidade que lhe é própria?
Soneto De Aniversário
Setembro me agasalha nos seus galhos
e de amor canto no seu verde ventre:
Eis a ventura vaga em danação,
bronze canonizado nas cigarras.O canto é breve, fino, e já anuncia
o inconfundível som do último acorde:
aquele dó de peito em nó estrídulo.
Como Bashô sonhara, é despedidaque mal se sabe, é morte anunciada,
canora liturgia sazonal.
Em setembro me mato e me renasçoem canto livre, rouco, sem ter palco,
representando de cor e salteado
o meu 13, que é fado e sortilégio.
O Maestro Sacode a Batuta
O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe …Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo …Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo…Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo…
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos…)Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal…
Lúbrica
Quando a vejo, de tarde, na alameda,
Arrastando com ar de antiga fada,
Pela rama da murta despontada,
A saia transparente de alva seda,
E medito no gozo que promete
A sua boca fresca, pequenina,
E o seio mergulhado em renda fina,
Sob a curva ligeira do corpete;
Pela mente me passa em nuvem densa
Um tropel infinito de desejos:
Quero, às vezes, sorvê-la, em grandes beijos,
Da luxúria febril na chama intensa…
Desejo, num transporte de gigante,
Estreitá-la de rijo entre meus braços,
Até quase esmagar nesses abraços
A sua carne branca e palpitante;
Como, da Ásia nos bosques tropicais
Apertam, em espiral auriluzente,
Os músculos hercúleos da serpente,
Aos troncos das palmeiras colossais.
Mas, depois, quando o peso do cansaço
A sepulta na morna letargia,
Dormitando, repousa, todo o dia,
À sombra da palmeira, o corpo lasso.Assim, quisera eu, exausto, quando,
No delírio da gula todo absorto,
Me prostasse, embriagado, semimorto,
O vapor do prazer em sono brando;
Entrever, sobre fundo esvaecido,
Dos fantasmas da febre o incerto mar,
Vaga, no Azul Amplo Solta
Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.
Espelho (II)
Para fechar sem chave a minha sina
Clara inversão da jaula das palavras
As vestes da sintaxe que componho
De baixo para cima é que renovo.Escancarando um solo transmutado
Para o sol da surpresa nas janelas
Ao mesmo pouso de ave renascida
Do fim regresso fera não domada.Na duração que escorre nessa arena
Lambendo vem a pressa em que me aposto.
Nessa voragem, vaga um mar de calmaQue me alimenta os ossos da memória.
Sobrada sobra, cinza dos minutos,
O que sobrou de mim são essas sombras
Elegia Marítima
Nasceu da terra. Seu corpo,
feito do limo das grutas,
surgiu cavalgando um rio
por uma estrada de luas.Através de ondas agrestes
de um oceano vegetal,
de onde acenavam aos olhos
ilhotas de manacás,alcançou o colo das praias
que a mão lasciva do mar
aperta, despe e mergulha
em seu aroma de sal.Ali viveu junto às vagas
essa esquiva amendoeira,
cabelos soltos à brisa,
pés escondidos na areia.Um dia o mar a arrastou
através de ilhas sem fim.
Parti com ela. E hoje canta
a morte dentro de mim.