A Vida Anterior
Longos anos vivi sob um pĂłrtico alto
De gigantes pilares, nobres, dominadores,
Que a luz, vinda do mar, esmaltava de cores,
Tornando-o semelhante às grutas de basalto.Chegavam até mim os ecos da harmonia
Do orfeĂŁo colossal das ondas chamejantes,
Ligando a sua voz Ă s tintas deslumbrantes
Da luz crepuscular que em meus olhos fugia.Em meio do esplendor do céu, do mar, dos lumes,
Foi-me dado gozar, voluptuosas calmas!
Escravos seminus, rescendendo perfumes,Minha fronte febril refrescavam com palmas,
E tinham por missĂŁo apenas descobrir
A misteriosa dor que eu andava a carpirTradução de Delfim Guimarães
Passagens sobre Eco
125 resultadosVivemos numa Paz de Animais Domésticos
Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha.
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razĂŁo acode, e o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os preceptores nos explicaram já quantas espĂ©cies de ofĂdios existem e o soro que neutraliza a mordedura de cada um. Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que nĂŁo devemos comer e as feras que nos nĂŁo podem devorar. Vivemos numa paz de animais domĂ©sticos, vacinados, com os dentes caninos a trincar pastĂ©is de nata, tendo aos pĂ©s, submissos, os antigos pesadelos da nossa ignorância. Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoolĂłgicos e botânicos ver, pacata e sĂ biamente, em jaulas e canteiros, o que já foi perigo e mistĂ©rio. E, por mais que nos custe, nĂŁo conseguimos captar a alma do brinquedo esventrado. O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que era bravo,
Brilha uma Voz na Noute…
Brilha uma voz na noute
De dentro de Fora ouvi-a…
Ă“ Universo, eu sou-te…
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!Cinzas de idéia e de nome
Em mim, e a voz:Ă“ mundo,
Sermente em ti eu sou-me…
Mero eco demim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.
Tarde De MĂşsica
SĂł Schumann, meu Amor! Serenidade…
NĂŁo assustes os sonhos…Ah! nĂŁo varras
As quimeras…Amor, senĂŁo esbarras
Na minha vaga imaterialidade…Liszt, agora o brilhante; o piano arde…
Beijos alados…ecos de fanfarras…
PĂ©talas dos teus dedos feitos garras…
Como cai em pĂł de oiro o ar da tarde!Eu olhava para ti…”Ă© lindo! Ideal!”
Gemeram nossas vozes confundidas.
— Havia rosas cor-de-rosa aos molhos —Falavas de Liszt e eu…da musical
Harmonia das pálpebras descidas,
Do ritmo dos teus cĂlios sobre os olhos…
Sentimento do Tempo
Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, trĂŞs ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer porque deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer porque o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais nĂŁo souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde sĂł existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se nĂŁo houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.