Teus medos tinham coral e praias e arvoredos.
Passagens de Fernando Pessoa
1382 resultadosNo que nasce tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que há-de morrer.
Quem sabe se o romance não será uma mais perfeita realidade e vida que Deus cria através de nós, que nós – quem sabe – existimos apenas para criar?
Nada se sabe, tudo se imagina.
Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.
Todo começo é involuntário.
Dá a Surpresa de Ser
Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.Seus seios altos parecem
(Se ela tivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem Ter que haver madrugada.E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como ?
Toda a noite, toda a noite, toda a noite sem pensar… Toda a noite sem dormir e sem tudo isso acabar.
A Morte Chega Cedo
A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.
Alguns de nós são de tal modo constituídos, que são à tarde outra pessoa que a que foram de manhã, e perpetuamente se despedem de uma personalidade perpetuamente ilusória.
Não é por nada que olho: é que eu gosto de ver as pessoas sendo.
A Celebridade é um Plebeísmo
Às vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade.
A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. É um plebeísmo porque estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes da sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas acções – ridiculamente humanas às vezes – que ele quereria invisíveis, coa-as a lente da celebridade para espectaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade.
Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de génio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu génio; e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que é ele próprio.
Nada revela mais uma incapacidade fundamental para o exercício do comércio que o hábito de concluir o que os outros querem sem estudar os outros, fechando-nos no gabinete da nossa própria cabeça.
Um país que, produzindo patriotas e soldados, produz também antipatriotas e traidores, é isso que é um país todo unido em torno à humanidade que o representa.
O génio é a insanidade tornada sã pela diluição no abstracto, como um veneno convertido em remédio mediante mistura.
Assim, Sem Nada Feito e o Por Fazer
Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!
Quando se Deve Violar a Lei Moral
É legítima toda a violação da lei moral que é feita em obediência a uma lei moral superior. Não é desculpável roubar um pão por ter fome. É desculpável a um artista roubar dez contos para garantir por dois anos a sua vida e tranquilidade, desde que a sua obra tenda a um fim civilizacional; se é uma mera obra estética, não vale o argumento.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.
Quem não quiser sofrer que se isole. Feche as portas da sua alma quanto possível à luz do convívio.
Qualquer indivíduo é ao mesmo tempo indivíduo e humano: difere de todos os outros e parece-se com todos os outros.