Passagens de Luís de CamÔes

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Com Grandes Esperanças Jå Cantei

Com grandes esperanças jå cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
despois vim a chorar porque cantara
e agora choro jĂĄ porque chorei.

Se cuido nas passadas que jĂĄ dei,
custa me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mĂĄgoas que passara
tenho pola mor mĂĄgoa que passei.

Pois logo, se estĂĄ claro que um tormento
dĂĄ causa que outro n’alma se acrescente,
jĂĄ nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?

Sete anos de pastor Jacob servia LabĂŁo, pai de Raquel, serrana bela; mas nĂŁo servia o pai, servia a ela, e a ela sĂł por prĂȘmio pretendia.

Eu Vivia De LĂĄgrimas Isento

Eu vivia de lĂĄgrimas isento,
num engano tĂŁo doce e deleitoso
que em que outro amante fosse mais ditoso,
nĂŁo valiam mil glĂłrias um tormento.

Vendo-me possuir tal pensamento,
de nenhĂŒa riqueza era envejoso;
vivia bem, de nada receoso,
com doce amor e doce sentimento.

Cobiçosa, a Fortuna me tirou
deste meu tĂŁo contente e alegre estado,
e passou-me este bem, que nunca fora:

em troco do qual bem sĂł me deixou
lembranças, que me matam cada hora,
trazendo-me Ă  memĂłria o bem passado.

Porque, inda que presentes nĂŁo estejam
As que eles ver desejam,
Mudança do lugar, menos de estado,
Não muda um coração de seu cuidado.

Enquanto Febo Os Montes Acendia

Enquanto Febo os montes acendia
do Céu com luminosa claridade,
por evitar do Ăłcio a castidade
na caça o tempo Délia despendia.

Vénus, que então de furto descendia,
por cativar de Anquises a vontade,
vendo Diana em tanta honestidade,
quase zombando dela, lhe dizia:

– Tu vĂĄs com tuas redes na espessura
os fugitivos cervos enredando,
mas as minhas enredam o sentido.

-Melhor Ă© (respondia a deusa pura)
nas redes leves cervos ir tomando
que tomar-te a ti nelas teu marido.

Julga-Me A Gente Toda Por Perdido

Julga-me a gente toda por perdido,
vendo-me, tĂŁo entregue a meu cuidado,
andar sempre dos homens apartado,
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rĂșstico, enganado,
quem nĂŁo Ă© com meu mal engrandecido.

VĂŁo revolvendo a terra, o mar e o vento,
busquem riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu sĂł em humilde estado me contento,
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n’alma.

Vir a lograr o prémio que ganhara
Por tĂŁo longos trabalhos e acidentes:
Cada um tem por gosto tĂŁo perfeito,
Que o coração pera ele é vaso estreito.

De Vós Me Aparto, Ó Vida! Em Tal Mudança

De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança,
sinto vivo da morte o sentimento.
NĂŁo sei para que Ă© ter contentamento,
se mais hå de perder quem mais alcança.

Mas dou vos esta firme segurança
que, posto que me mate meu tormento,
pelas ĂĄguas do eterno esquecimento
segura passarå minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
que com qualquer cous’ outra se contentem;
antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem,
que com esquecimento desmereçam
a glĂłria que em sofrer tal pena sentem.

Alma Minha Gentil, que te Partiste

Alma minha gentil, que te partiste
TĂŁo cedo desta vida descontente,
Repousa lå no Céu eternamente,
E viva eu cĂĄ na terra sempre triste.

Se lå no assento Etéreo, onde subiste,
MemĂłria desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que jĂĄ nos olhos meus tĂŁo puro viste.

E se vires que pode merecer-te
AlgƩa cousa a dor que me ficou
Da mågoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tĂŁo cedo de cĂĄ me leve a ver-te,
QuĂŁo cedo de meus olhos te levou.

Ordena Amor que Morra, e Pene Juntamente

Como fizeste, Ăł Porcia, tal ferida?
Foi voluntĂĄria, ou foi por inocĂȘncia?
É que Amor fazer sĂł quis experiĂȘncia
Se podia eu sofrer, tirar-me a vida?

E com teu prĂłprio sangue te convida
A que faças Ă  morte resistĂȘncia?
É que costume faço da paciĂȘncia,
Porque o temor morrer me nĂŁo impida.

Pois porque estĂĄs comendo com fogo ardente,
Se a ferro te costumas? É que ordena
Amor que morra, e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
Si, que a dor costumada nĂŁo se sente,
E nĂŁo quero eu a morte sem a pena.

Como Quando Do Mar Tempestuoso

Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
d’um naufrĂĄgio cruel jĂĄ salvo a nado,
sĂł ouvir falar nele o faz medroso;

e jura que em que veja bonançoso
o violento mar, e sossegado
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

Assi, Senhora eu, que da tormenta,
de vossa vista fujo, por salvar me,
jurando de nĂŁo mais em outra ver me;

minh’alma que de vĂłs nunca se ausenta,
då me por preço ver vos, faz tornar me
donde fugi tĂŁo perto de perder me.

Dai Me Üa Lei, Senhora, De Querer Vos

Dai me ĂŒa lei, Senhora, de querer vos,
que a guarde, sĂŽ pena de enojar vos;
que a fé que me obriga a tanto amar vos
farĂĄ que fique em lei de obedecer vos.

Tudo me defendei, senĂŁo sĂł ver vos,
e dentro na minh’alma contemplar vos;
que, se assi nĂŁo chegar a contentar vos,
ao menos que nĂŁo chegue [a] aborrecer vos.

E, se essa condição cruel e esquiva,
que me dois lei de vida nĂŁo consente,
dai ma, Senhora, jĂĄ, seja de morte.

Se nem essa me dais, Ă© bem que viva,
sem saber como vivo, tristemente,
mas contente porém de minha sorte.

Porque, enfim, tudo passa;
NĂŁo sabe o Tempo ter firmeza em nada;
E a nossa vida escassa
Foge tĂŁo apressada.
Que quando se começa é acabada.

Jurando de nĂŁo Mais em Outra Ver-me

Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro todo trabalhado,
De um naufrĂĄgio cruel saindo a nado,
SĂł de ouvir falar nele estĂĄ medroso;

Firme jura que o vĂȘ-lo bonançoso
Do seu lar o nĂŁo tire sossegado;
Mas esquecido jĂĄ do horror passado,
Dele a fiar se torna cobiçoso;

Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de nĂŁo mais em outra ver-me;

Com a alma que de vĂłs nunca se ausenta,
Me torno, por cobiça de ganhar-me,
Onde estive tĂŁo perto de perder-me.