Passagens de Mia Couto

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Arrumar os Mortos

É preciso que compreendam: nós não temos competência para arrumarmos os mortos no lugar do eterno.
Os nossos defuntos desconhecem a sua condição definitiva: desobedientes, invadem-nos o quotidiano, imiscuem-se do território onde a vida deveria ditar sua exclusiva lei.
A mais séria consequência desta promiscuidade é que a própria morte, assim desrespeitada pelos seus inquilinos, perde o fascínio da ausência total.
A morte deixa de ser a mais incurável e absoluta diferença entre os seres.

Atrás é onde melhor se vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la.

Quem mais sofre na guerra é quem não tem serviço de matar. As crianças e as mulheres: essas são quem carrega mais desgraça.

Não é a paz que lhe interessa. Eles se preocupam é com a ordem, o regime desse mundo. (…) O problema deles é manter a ordem que lhes faz serem patrões. Essa ordem é uma doença em nossa história.

Os seus olhos ganharam brilho num silencioso agradecimento: só é olhado pelo céu quem olha para as estrelas.

Beber Toda a Ternura

Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces

A saudade é uma tatuagem na alma: só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.

Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida.

O jornalista atribui a si mesmo uma missão, e essa missão tem notáveis semelhanças com uma operação de guerra: trata-se de conquistar audiências, bombardear com notícias num tempo precioso e milimetricamente calculado. O jornalista está em cima do acontecimento como se o evento fosse um alvo preciso. O acontecimento é a presa dessa aranha que é o repórter, nessa teia noticiosa que dá a volta ao planeta.

Nascemos e choramos. A nossa língua materna não é a palavra. O choro é o nosso primeiro idioma.

Há mulheres que procuram um homem que lhes abra o mundo. Outras buscam um que as tire do mundo. A maior parte, porém, acaba por se unir a alguém que lhes tira o mundo.

Eis a armadilha da glória: quanto maior for a vitória, mais o herói será perseguido e cercado pelo passado. Esse passado devorará o presente. Nào importa quantas condecorações recebeu ou venha a receber: a única medalha que, no final, lhe irá sobrar é a triste e fatal solidão.

O culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade.