Passagens de Mia Couto

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O coração de um homem ou de uma mulher não obedece a imperativos de consciência. Ninguém namora por dever.

Nenhum sonho se pode contar. Seria preciso uma língua sonhada para que o devaneio fosse transmissível. Não há essa ponte. Um sonho só pode ser contado num outro sonho.

As palavras que movem e que constituem perigo são as palavras que não podem ser ditas em nenhuma língua: as palavras dos sonhos. (…) Quando não se fecha uma estória, a multidão fica contaminada pela doença de sonhar.

É que em todo o lado, mesmo no invisível, há uma porta. Longe ou perto, não somos donos, mas simples convidados. A vida, por respeito, requer licença.

Podemos ser diversas coisas. O erro é quando queremos ser apenas uma. O erro é quando queremos negar que somos diversas coisas ao mesmo tempo.

A felicidade só cabe no vazio da mão fechada. A felicidade é uma coisa que os poderosos criaram para ilusão dos mais pobres.

Saudade

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

Talvez seja necessário assaltar um último reduto de racismo que é a arrogância de um único saber e a incapacidade de estar disponível para filosofias que chegam das nações empobrecidas.

Faça como o galo que mostra as penas do rabo. Quanto mais belas as penas, menos você cai na panela.

Os europeus, quando caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com delicadeza mas, estranhamente, produzem muito barulho.

Um homem salva-se se é vontade da sua vida. Os outros são só o alimento dessa vontade.

A fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em volta era o nada, mesmo o vento estava sozinho.

De facto, nenhum sonho pode ser reescrito, um sonho pede uma linguagem que não há, que é a linguagem dos sonhos, e para se ter acesso a essa linguagem só há uma via, uma porta, que é a porta da poesia.

O Instante Antes do Beijo

Não quero o primeiro beijo:
basta-me
O instante antes do beijo.

Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.

Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.

Eu me abria e confessava antigas lembranças ao estrangeiro. Vantagem de um estranho é que confiamos essa mentira de termos uma só alma.