Passagens de Mia Couto

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O segredo é demorar o sofrimento, cozinhá-lo em lentíssimo fogo, até que ele se espalhe, diluto, no infinito do tempo.

Para Ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Cada coisa tem direito a ser uma palavra. Cada palavra tem o dever de não ser nenhuma coisa.

Por estranho complexo de inferioridade, estamos sempre receosos de que os outros nos venham influenciar. E não reparamos no movimento inverso. Hoje, os maiores escritores ingleses são oriundos da Ásia, a maior fadista portuguesa vem de Moçambique e uma das maiores cantoras de flamengo espanhol é uma negra da Guiné Equatorial.

Uns sabem e não acreditam. Esses não chegam nunca a ver. Outros não sabem e acreditam. Esses não vêem mais que um cego.

Só quem reza, em total entrega da alma, sabe desse acender e tombar da palavra nos abismos.

O que dói na morte é a falsidade. A morte apenas existe por uma brevíssima troca de ausências. Em outro ser, o morto irá renascer. A nossa dor é a de não sabermos ser imortais.

Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos.

As ideias funcionam como esposas ciumentas que fecham as cortinas e trancam o marido à chave. E essas ideias parecem entidades cansadas que dormem na cama da memória. E sucede connosco uma coisa dramática que é: cada vez mais somos quem já fomos.

Só há um modo de escapar de um lugar: é sairmos de nós. Só há um modo de sairmos de nós: é amarmos alguém.

Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente.

A terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências a que chamamos ternura.

A prisão é um lugar onde se dorme muito e o sonho substitui o viver. É a única coisa que o sistema não pode encarcerar: os sonhos.

Só há um modo de enfrentar as más lembranças: é mudar radicalmente de viver, decepar raízes e fazer as pontes desabarem.

Não é força que se pede a um canoeiro. O segredo está no ritmo dos remos, batendo num mesmo compasso na superfície da água.