Uma casa morre, se não é habitada com amor.
Passagens de Mia Couto
388 resultadosNós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos.
O segredo é demorar o sofrimento, cozinhá-lo em lentíssimo fogo, até que ele se espalhe, diluto, no infinito do tempo.
Para Ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudoPara ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do semprePara ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
Cada coisa tem direito a ser uma palavra. Cada palavra tem o dever de não ser nenhuma coisa.
Por estranho complexo de inferioridade, estamos sempre receosos de que os outros nos venham influenciar. E não reparamos no movimento inverso. Hoje, os maiores escritores ingleses são oriundos da Ásia, a maior fadista portuguesa vem de Moçambique e uma das maiores cantoras de flamengo espanhol é uma negra da Guiné Equatorial.
Uns sabem e não acreditam. Esses não chegam nunca a ver. Outros não sabem e acreditam. Esses não vêem mais que um cego.
Só quem reza, em total entrega da alma, sabe desse acender e tombar da palavra nos abismos.
O que dói na morte é a falsidade. A morte apenas existe por uma brevíssima troca de ausências. Em outro ser, o morto irá renascer. A nossa dor é a de não sabermos ser imortais.
Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos.
As ideias funcionam como esposas ciumentas que fecham as cortinas e trancam o marido à chave. E essas ideias parecem entidades cansadas que dormem na cama da memória. E sucede connosco uma coisa dramática que é: cada vez mais somos quem já fomos.
O tempo é o único remédio.
Só há um modo de escapar de um lugar: é sairmos de nós. Só há um modo de sairmos de nós: é amarmos alguém.
Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente.
A terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências a que chamamos ternura.
As pálpebras são o pano do esquecimento.
Agora já é tarde. Só reparo o tempo quando já passou.
A prisão é um lugar onde se dorme muito e o sonho substitui o viver. É a única coisa que o sistema não pode encarcerar: os sonhos.
Só há um modo de enfrentar as más lembranças: é mudar radicalmente de viver, decepar raízes e fazer as pontes desabarem.
Não é força que se pede a um canoeiro. O segredo está no ritmo dos remos, batendo num mesmo compasso na superfície da água.