O Vício de Ler
O vício de ler tudo o que me caísse nas mãos ocupava o meu tempo livre e quase todo o das aulas. Podia recitar poemas completos do repertório popular que nessa altura eram de uso corrente na Colômbia, e os mais belos do Século de Ouro e do romantismo espanhóis, muitos deles aprendidos nos próprios textos do colégio. Estes conhecimentos extemporâneos na minha idade exasperavam os professores, pois cada vez que me faziam na aula qualquer pergunta difícil, respondia-lhes com uma citação literária ou com alguma ideia livresca que eles não estavam em condições de avaliar. O padre Mejia disse: «É um garoto afectado», para não dizer insuportável. Nunca tive que forçar a memória, pois os poemas e alguns trechos de boa prosa clássica ficavam-me gravados em três ou quatro releituras. Ganhei do padre prefeito a primeira caneta de tinta permanente que tive porque lhe recitei sem erros as cinquenta e sete décimas de «A vertigem», de Gaspar Núnez de Arce.
Lia nas aulas, com o livro aberto em cima dos joelhos e com tal descaramento que a minha impunidade só parecia possível devido à cumplicidade dos professores. A única coisa que não consegui com as minhas astúcias bem rimadas foi que me perdoassem a missa diária às sete da manhã.
Passagens sobre Ninguém
1737 resultadosNinguém acredita nos peritos, mas toda a gente acredita no que dizem.
O mais importante para o homem é crer em si mesmo. Sem esta confiança em seus recursos, em sua inteligência, em sua energia, ninguém alcança o triunfo a que aspira.
Dois Excertos de Odes
(Fins de duas odes, naturalmente)
I
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
Desaprender
Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a… desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!».
Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.
Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado.
Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo. Organiza «dossiers» com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome,
Exaltação Ao Amor
Sofro, bem sei…Mas se preciso for
sofrer mais, mal maior, extraordinário,
sofrerei tudo o quanto necessário
para a estrela alcançar…colher a flor…Que seja imenso o sofrimento, e vário!
Que eu tenha que lutar com força e ardor!
Como um louco, talvez, ou um visionário
hei de alcançar o amor…com o meu Amor!Nada me impedirá que seja meu,
se é fogo que em meu peito se acendeu,
e lavra, e cresce, e me consome o Ser…Deus o pôs…Ninguém mais há de dispor…
Se esse amor não puder ser meu viver,
há de ser meu para eu morrer de Amor!
Tu És em Mim Profunda Primavera
O sabor da tua boca e a cor da tua pele,
pele, boca, fruta minha destes dias velozes,
diz-me, sempre estiveram contigo
por anos e viagens e por luas e sóis
e terra e pranto e chuva e alegria,
ou só agora, só agora
brotam das tuas raízes
como a água que à terra seca traz
germinações de mim desconhecidas
ou aos lábios do cântaro esquecido
na água chega o sabor da terra?Não sei, não mo digas, tu não sabes.
Ninguém sabe estas coisas.
Mas, aproximando os meus sentidos todos
da luz da tua pele, desapareces,
fundes-te como o ácido
aroma dum fruto
e o calor dum caminho,
o cheiro do milho debulhado,
a madressilva da tarde pura,
os nomes da terra poeirenta,
o infinito perfume da pátria:
magnólia e matagal, sangue e farinha,
galope de cavalos,
a lua poeirenta das aldeias,
o pão recém-nascido:
ai, tudo o que há na tua pele volta à minha boca,
volta ao meu coração, volta ao meu corpo,
e volto a ser contigo a terra que tu és:
tu és em mim profunda primavera:
volto a saber em ti como germino.
Linda
Intimamente sinto uma grande vontade
de não mais duvidar do que você me diz,
– de acreditar enfim na sua falsidade
e fingir que me iludo em me julgar feliz…Quero crer… na inconstância e volubilidade
dos seus olhos azuis ou verdes, não sei bem,
e tentar convencer-me da felicidade
de que é meu o seu amor, só meu… de mais ninguém…Quero nessa ilusão – minha íntima esperança
transformar na feliz e invejável certeza
dos que sabem gostar e podem ter confiança…Mas é inútil, bem sei… A dúvida não finda!
E ao sentir seu olhar e ao ver sua beleza
não sei como confiar em quem nasceu tão linda!
Ninguém pode fazê-lo inferior sem a sua permissão.
Ninguém mais morto do que o esquecido.
Não Amar nem Odiar
Se possível, não devemos alimentar animosidade contra ninguém, mas observar bem e guardar na memória os procedimentos de cada pessoa, para então fixarmos o seu valor, pelo menos naquilo que nos concerne, regulando, assim, a nossa conduta e atitude em relação a ela, sempre convencidos da imutabilidade do carácter. Esquecer qualquer traço ruim de uma pessoa é como jogar fora dinheiro custosamente adquirido. No entanto, se seguirmos o presente conselho, estaremos a proteger-nos da confiabilidade e da amizade tolas.
«Não amar, nem odiar», eis uma sentença que contém a metade da prudência do mundo; «nada dizer e em nada acreditar» contém a outra metade. Decerto, daremos de bom grado as costas a um mundo que torna necessárias regras como estas e como as seguintes.
Mostrar cólera e ódio nas palavras ou no semblante é inútil, perigoso, imprudente, ridículo e comum. Nunca se deve revelar cólera ou ódio a não ser por actos; e estes podem ser praticados tanto mais perfeitamente quanto mais perfeitamente tivermos evitado os primeiros. Apenas animais de sangue frio são venenosos.
Falar sem elevar a voz: essa antiga regra das gentes do mundo tem por alvo deixar ao entendimento dos outros a tarefa de descobrir o que dissemos.
Pode acordar, abre o olho, rapaz. Ninguém é tão santa, nem tão demônio quanto aparenta.
Todos podem ver as táticas de minhas conquistas, mas ninguém consegue discernir a estratégia que gerou as vitórias.
Esta Dor que me Faz Bem
As coisas falam comigo
uma linguagem secreta
que é minha, de mais ninguém.
Quem sente este cheiro antigo,
o cheiro da mala preta,
que era tua, minha mãe?Este cheiro de além-vida
e de indizível tristeza,
do tempo morto, esquecido…
Tão desbotada e puída
aquela fita escocesa
que enfeitava o teu vestido.Fala comigo e conversa,
na linguagem que eu entendo,
a tua velha gaveta,
a vida nela dispersa
chega à cama onde me estendo
num perfume de violeta.Vejo as tuas jóias falsas
que usavas todos os dias,
do princípio ao fim do ano,
e ainda oiço as tuas valsas,
minha mãe, e as melodias
que cantavas ao piano.Vejo brancos, decotados,
os teus sapatos de baile,
um broche em forma de lira,
saia aos folhos engomados
e sobre o vestido um xaile,
um xaile de Caxemira.Quantas voltas deu na vida
este álbum de retratos,
de veludo cor de tília?
Gente outrora conhecida,
quem lhe deu tantos maus tratos?
Em Vão
Passo triste na vida e triste sou,
Um pobre a quem jamais quiseram bem!
Um caminhante exausto que passou,
Que não diz onde vai nem donde vem.Ah! Sem piedade, a rir, tanto desdém
a flor da minha boca desdenhou!
Solitário convento onde ninguém
A silenciosa cela procurou!E eu quero bem a tudo, a toda gente…
Ando a amar assim, perdidamente,
A acalentar o mundo nos meus braços!E tem passado, em vão, a mocidade
Sem que no meu caminho uma saudade
Abra em flores a sombra dos meus passos!
Há Muitas Religiões, Mas o Espírito é Único
– Que religião é a tua? – perguntou um homem de certa idade, que estava num extremo da balsa, junto do seu carro.
– Não tenho nenhuma religião. Porque não creio em ninguém mais do que em mim mesmo – replicou o velho com ar resoluto.
– Como pode uma pessoa crer em si mesma ? Pode enganar-se – objectou Nekliudov, intervindo na conversa.
– Nunca! – exclamou o velho abanando a cabeça.
– Porque há então diferentes religiões ?- interrogou Nekliudov.
– Porque as pessoas crêem precisamente nessas religiões e não crêem em si mesmas. Também eu acreditei nos outros e perdi-me como numa floresta. Estava tão confuso que julguei não poder mais encontrar o caminho. Conheci múltiplas religiões diferentes. Todas se louvam a si mesmas. Todas se foram propagando, tal como uns carneiros cegos arrastam outros consigo. Há muitas religiões, mas o espírito é único. É o mesmo em ti, em vós e em mim. Assim, pois, cada um de nós tem de acreditar no seu espírito, e deste modo todos estamos unidos.
Vir a morte e levar-nos. E não fazermos falta a ninguém. Nem a nós. Que outra vida mais perfeita?
Loucura Subjectiva
Às vezes não tenho tanto a certeza de quem tem o direito de dizer quando um homem é louco e quando não é. Às vezes penso que não há ninguém completamente louco tal como não há ninguém completamente são até a opinião geral o considerar assim ou assado. É como se não fosse tanto o que um tipo faz, mas o modo como a maioria das pessoas o encara quando o faz.
O Mundo Está tão Cheio de Livros como Falto de Verdades
O mundo está tão cheio de livros, como falto de verdades. E oxalá que nos homens fossem de algum modo tantos os frutos, quantas são sem número nos livros as folhas; mas a desgraça é que, por mais que sejam muitos os notadores dos livros, são muito mais os que no mundo vivem notados; e não basta vermos encadernados os livros, para que deixemos de ver desencademados os homens. Com efeito, são os livros os suores dos homens ou o engenho dos homens; e está o mundo tão emendado, que já ninguém vive do suor alheio.
Ninguém se julga como o julgam; penso de mim o que tu pensas de ti; qualquer tem pela melhor a maneira de tratar-se, por mais correcta a vida, por mais justa a sua causa, pela maior a honra e por acertadas as selecções que faz.