Gratidão
A minha gratidão te dá meus versos:
Meus versos, da lisonja não tocados,
Satélites de Amor, Amor seguindo
Co’as asas que lhes pôs benigna Fama,
Qual níveo bando de inocentes pombas,
Os lares vão saudar, propícios lares,
Que em doce recepção me contiveram
Incertos passos da Indigência errante;
Dos olhos vão ser lidos, que apiedara
A catástrofe acerba de meus dias,
Dos infortúnios meus o quadro triste;
Vão pousar-te nas mãos, nas mãos que foram
Tão dadivosas para o vate opresso,
Que o peso dos grilhões me aligeiraram,
Que sobre espinhos me esparziram flores,
Enquanto não recentes, vãos amigos,
Inúteis corações, volúvel turba
(A versos mais atenta que a suspiros)
No Letes mergulhou memórias minhas.
Amigos da Ventura e não de Elmano,
Aónio serviçal de vós me vinga;
Ao nome da Virtude o Vício core.Não sei se vens de heróis, se vens de grandes;
Não sei, meu benfeitor, se teus maiores
Foram cobertos, decorados foram
De purpúreos dosséis, de márcios loiros;
Sei que frequentas da Amizade o templo,
Que és grande,
Poemas sobre Morte
319 resultadosTu Mandaste-me Dizer
Tu mandaste-me dizer
Que tornavas novamente
Quando viesse a tardinha;
E eu, para mais te prender,
– N’esse dia…Pintei de negro os meus olhos
E de rôxo a minha boca.
As rosas eram aos mólhos
Para a noite rubra e louca!Entornei sobre o meu corpo,
– Que fôra delgado e bello!
O perfume mais extranho e mais subtil;
E um brocado rôxo e verde
Envolveu a minha carne
Macerada e varonil.
Os meus hombros florentinos,
Cobértos de pedraria,
Eram chagas luminosas
Alumiando o meu corpo
Todo em fébre e nostalgia.
Nas minhas mãos de cambraia,
As esmeraldas scintillavam;
E as pérolas nos meus braços,
Murmuravam…
Desmanchado, o meu cabello,
Em ondas largas, cahia,
Na minha fronte
Ligeiramente sombría.Estava pallido e dir-se-hia
Que a pallidez aumentava
A minha grande belleza!Na minha boca ondulava
Um sorriso de tristeza.A noite vinha tombando.
E, como tardasses,
Fiquei-me, sentádo, olhando
O meu vulto reflectido
No espelho de crystal;
Mesa dos Sonhos
Ao lado do homem vou crescendo
Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamenteMesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidasAo lado do homem vou crescendo
E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida
Farto de voar
Farto de voar
Pouso as palavras no chão
Entro no mar
Sinto o sal de mão em mão
Tenho um barco na vida espetado
Só suspenso por fios dum lado
E do outro a cair
a cair
no arpão
no arpãoLevo a dormir
Sonhos que andei para trás
Ergo o porvir
Trago nos bolsos a paz
Tenho um corpo na morte espetado
Só suspenso por balas de um lado
E do outro a escapar
a escapar
de raspão
de raspãoPonho a girar
Cantos que ninguém encerra
De par em par
Abro as janelas para a terra
Tenho um quarto na fome espetado
Só suspenso por água de um lado
E de outro a cair
a cair
no alçapão
no alçapãoFarto de voar
Pouso as palavras no chão
Entro no mar
Sinto o sal de mão em mão
Tenho um barco na vida espetado
Só suspenso por fios dum lado
E do outro a cair
a cair
no arpão
no arpão
Autobiografia de um Só Dia
A Maria Dulce e Luiz Tavares
No Engenho Poço não nasci:
minha mãe, na véspera de mim,veio de lá para a Jaqueira,
que era onde, queiram ou não queiram,os netos tinham de nascer,
no quarto-avós, frente à maré.Ou porque chegássemos tarde
(não porque quisesse apressar-me,e se soubesse o que teria
de tédio à frente, abortaria)ou porque o doutor deu-me quandos,
minha mãe no quarto-dos-santos,misto de santuário e capela,
lá dormiria, até que para ela,fizessem cedo no outro dia
o quarto onde os netos nasciam.Porém em pleno Céu de gesso,
naquela madrugada mesmo,nascemos eu e minha morte,
contra o ritual daquela Corteque nada de um homem sabia:
que ao nascer esperneia, grita.Parido no quarto-dos-santos,
sem querer, nasci blasfemando,pois são blasfêmias sangue e grito
em meio à freirice de lírios,mesmo se explodem (gritos, sangue),
de chácara entre marés, mangues.
you are welcome to elsinore
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipícioAo longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posiçãoEntre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeitaEntre nós e as palavras,
Algures
Armei a boiz, a derradeira porta,
flexível, a favor do vento.
Pousado na noite
descobri o teu rasto.
Uma vida não basta
para termos um rosto
e levá-lo, sem morte,
ao lado encontrado
num embrulho de dedos.Corta o barbante,
e segura no corpo
até que ele morra.
Retórica da Paisagem
O que se pede da poesia? Que nos entretenha os olhos
com as rendas sulfurosas de um doentio crepúsculo?
Com efeito, no poema, as palavras não nos servem
de cestos em que se recolham – dilatados, quase
a cair das árvores – os frutos. E contudo, continuamos
a confundir os caminhos do poema com os do mundo
quando eles, na natureza, apenas nos apontam
a incerteza do destino. As palavras repetem-se –
frutos atirados sobre a mesa – e a morte,
para quem não acredita no poder de transfiguração
das metáforas, esgota da vida todo o sentido.
Diz-se: os ramos não crescem no quadro,
os pássaros deixam de assolar a paisagem –
e o pensamento, ao reflectir-se, deixa a tela
pejada dos restos em que se perdeu pelo
horizonte. Mas todo o conhecimento
acaba no ponto em que o voo se
confunde com a linha acidentada da planície.
fingir que está tudo bem
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
Súplica
Mortos que em certas horas me falais
Com a vossa mudez ou murmúrios subtis,
Dizei: Custa muito morrer?
Há lá, por esse mundo, uma outra vida,
Que valha a pena viver?Mortos que em certas horas me tocais
Com a vossa mão fria,
Dizei-me: Com a morte tudo acaba,
Ou, como se nascêssemos de novo,
Um novo mundo principia?Nada sei.
Sou inexperiente da morte,
Pois não morri ainda.
Queria saber e desvendar
Se com a morte que tomba
Alguma coisa começa,
Ou, se pelo contrário, tudo finda.Esses que amei, com quem vivi, felizes,
Num mundo de amarguras povoado,
De novo, poderei tornar a vê-los,
Felizes ao meu lado?Ilusões, quem as criou,
É um benfeitor
Que merece guarida!
Dai-me a ilusão, todos vós que morrestes,
De uma outra vida melhor
Para além desta vida.
Quando Vier a Primavera
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhumaSe soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
A Morte Chega Cedo
A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.
Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos
Ai o meu pobre filho, que rico que é
ai o meu rico filho, que pobre que é
Nascidos do mesmo ventre
Um vive de joelhos pró outro passar à frente
E esta velha mãe para aqui já no sol poenteUm dia há muito tempo, vi-os partir
levando cada um do outro o porvir
Seguiram pela estrada fora
Um voltou-se para trás, disse adeus que me vou embora
Voltaremos trazendo connosco a vitóriaDe que vitória falas, disse eu então
Da que faz um escravo do teu irmão?
Ou duma outra que rebenta
como um rio de fúria no peito feito tormenta
quando não há nada a perder no que se tenta?Passaram muitos anos sem mais saber
nem por onde passavam, nem se por ter
criado os dois no mesmo chão
eram ainda irmãos, partilhavam ainda o pão
E o silêncio enchia de morte o meu coraçãoDepois vieram novas que o que vivia
da miséria do outro, se enriquecia
Não foi para isto que andei
dias que foram longos e noites que não contei
a lutar pra ter a justiça como leiÀs vezes rogo pragas de os ver assim
Sinto assim uma faca dentro de mim
Sei que estou velha e doente
Mas para ver o mundo girar de modo diferente
Ainda sei gritar,
Nós Somos Vida das Gentes
Sempre é morto quem do arado
há-de viver.Nós somos vida das gentes,
e morte de nossas vidas;
a tiranos pacientes
que a unhas e a dentes
nos têm as almas roídas.
Pera que é parouvelar?
Que queira ser pecador
o lavrador,
não tem tempo nem lugar
nem somente d’alimpar
as gotas do seu suor.N’ergueija bradam co’ele,
porque assoviou a um cão;
e logo excomunhão na pele,
o fidalgo, maçar nele,
atá o mais triste rascão.
Se não levam torta a mão,
não lhe acham nenhum dereito.
Muito atribulados são!
Cada um pela o vilão
per seu jeito.Trago a prepósito isto,
perque veio a bem de fala.
Manifesto está e visto
que o bento Jesu Cristo
deve ser homem de gala.
E é rezão que nos valha
neste serão glorioso,
que é gram refúgio sem falha.
Isto me faz forçoso,
e não estou temeroso
nemigalha.(excerto)
Como, Morte, Temer-te?
Como, morte, temer-te?
Não estás aqui comigo, a trabalhar?
Não te toco em meus olhos; não me dizes
que não sabes de nada, que és vazia,
inconsciente e pacífica? Não gozas,
comigo, tudo: glória, solidão,
amor, até tuas entranhas?
Não me estás a sustentar,
morte, de pé, a vida?
Não te levo e trago, cego,
como teu guia? Não repetes
com tua boca passiva
o que quero que digas? Não suportas,
escrava, a gentileza com que te obrigo?Tradução de José Bento
O Dia Segue o Curso Itinerante
I
Assim te amei, amada, assim te amei
de amor tão grande e puro que secou
no peito meu o rio que corria
submisso e atento para os braços teus.
Nos ermos vales agora percorro
os gestos esquecidos, densas brumas
do rio que fui, o rio que fomos,
largas águas seguindo o mar da noite.
Assim te amei o amor maior que pude.
E, mais ainda, a minha vida foi
uma desfeita nau vagando a esmo
o mar do tempo, o mar janeiro, o mar
que perdi. E agora, de ti disperso,
nos desertos de mim, sem fim, caminho.II
E vou por outras águas procurando
o manso pouco, o malvo campo onde
apascentar o rebanho de mágoas,
o carro de afectos que mantenho
guardados no denso peito, tangidos
pelo vento no dorso do horizonte.
Largos desertos! abrandai a pena
sem fim que me domina! Alvos lírios,
rosas, boninas, nardos e outras flores!
Vinde ao menos cobrir-me a branda fronte
de púrpura, de orvalho e calmaria.
Eis que me vou por este vasto mar
de afagos e carícias inconstantes,
Entre a Flor e o Tempo
Também de dor se morre pois é morte
o sentimento ausente. O ser feliz
é ser presente, sem que mais importe
esse profundo sulco e a cicatriz
que no corpo nos marca o sofrimento.
Assim é nossa vida, sempre o lance
de viver, mesmo em dor, e dos momentos
erguer templos, embora breve o alcance
em nós do tempo. E o que restar do ardor
com que se vive o amor enfim carrega
em rosa mais perfeita e em outro amor
sonhado da extensão de nossa entrega.
No impulso com que o espaço alcança o tempo
a vida se ergue além do sofrimento.
O Que Eu Sou
Nocturna e dubia luz
Meu sêr esboça e tudo quanto existe…
Sou, num alto de monte, negra cruz,
Onde bate o luar em noite triste…Sou o espirito triste que murmura
Neste silencio lúgubre das Cousas…
Eu é que sou o Espectro, a Sombra escura
De falecidas formas mentirosas.E tu, Sombra infantil do meu Amôr,
És o Sêr vivo, o Sêr Espiritual,
A Presença radiosa…
Eu sou a Dôr,
Sou a tragica Ausencia glacial…Pois tu vives, em mim, a vida nova,
E eu já não vivo em ti…
Mas quem morreu?
Fôste tu que baixaste á fria cova?
Oh, não! Fui eu! Fui eu!Horrivel cataclismo e negra sorte!
Tu fôste um mundo ideal que se desfez
E onde sonhei viver apoz a morte!
Vendo teus lindos olhos, quanta vez,
Dizia para mim: eis o logar
Da minha espiritual, futura imagem…
E viverei á luz daquele olhar,
Divino sol de mistica Paisagem.Era minha ambição primordial
Legar-lhe a minha imagem de saudade;
Mas um vento cruel de temporal,
Mergulha nos Sonhos
mergulha nos sonhos
ou um lema pode ser teu aluimento
(as árvores são as suas raízes
e o vento é o vento)confia no teu coração
se os mares se incendeiam
(e vive pelo amor
embora as estrelas para trás andem)honra o passado
mas acolhe o futuro
(e esgota no bailado
deste casamento a tua morte)não te importes com o mundo
com quem faz a paz e a guerra
(pois deus gosta de raparigas
e do amanhã e da terra)Tradução de Cecília Rego Pinheiro
A Noite de Pavese
Raras vezes me franquearam a porta
e me deixaram entrar. A febre
sitia-me a alma e quem me vê
assusta-se do aspecto do meu rosto,
esta barba por fazer onde um rouxinol
se esconde. E mais ainda assusta
a minha altura, este lugar de vertigem
e palavras poderosas, a presença
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,
o estremecimento que corre nos meus ombros.
Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.
E quando entro nas casas os meus gestos
afeiçoam-se a alguma coisa enigmática
que contorna o pavor e o entrega
por não se saber que espécie de vida ou de morte
vem comigo. Obviamente, eu abençoo
quem me deixa entrar, dou a entender
que alguma coisa brilha nas minhas mãos
e posso matar a fome com uma ou outra palavra
próxima do amor, um dedo nos cabelos
de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa
em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem
com as inefáveis sombras que vejo nos outros
e tento decifrar para meu contentamento.
Mandaram-me sentar e deram-me de beber.