Dois Excertos de Odes
(Fins de duas odes, naturalmente)
I
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
Poemas sobre Perguntas
26 resultadosInquérito
Pergunta às árvores da rua
que notícia têm desse dia
filtrado em betume da noite;
se por acaso pressentiram
nas aragens conversadeiras,
ágil correio do universo,
um calar mais informativo
que toda grave confissão.Pergunta aos pássaros, cativos
do sol e do espaço, que viram
ou bicaram de mais estranho,
seja na pele das estradas
seja entre volumes suspensos
nas prateleiras do ar, ou mesmo
sobre a palma da mão de velhos
profissionais de solidão.Pergunta às coisas, impregnadas
de sono que precede a vida
e a consuma, sem que a vigília
intermédia as liberte e faça
conhecedoras de si mesmas,
que prisma, que diamante fluido
concentra mil fogos humanos
onde era ruga e cinza e não.Pergunta aos hortos que segredo
de clepsidra, areia e carocha
se foi desenrolando, lento,
no calado rumo do infante
a divagar por entre símbolos
de símbolos outros, primeiros,
e tão acessíveis aos pobres
como a breve casca do pão.Pergunta ao que, não sendo, resta
perfilado à porta do tempo,
Exílio
O mundo não era o rosto de minha amada,
nem o olhar de minha mãe.
E aquele fim de noite, preso na árvore do amanhã,
tão pouco trazia o meu primeiro dia.Fiquei eu, e a presença
de uma pergunta — uma só! — velada
como as memórias de um mar
no vazio das conchas.E essa pergunta — meu Deus! — eu já esqueci.
Se Perguntas Onde Fui
Se perguntas onde fui,
devo dizer: o mar.
Estive sempre ali,
mesmo estando a mudar.Foi ali que escrevi
tua pele, teu suor.
Ao tempo, seus faróis.
Não mudei de mudar.2
O que mudou em mim,
senão andar mudando
sem nunca mais mudar?Quem mudará em mim,
se não sei mudar?3
Ou me mudei. Sou outro.
Outra ventura, outra
virtude, cadência,
remota criatura.Então que se apresente.
Seja tenaz, plausível
esse rosto invisível
e áspero.Mudei. Soprava o mar.
Mudei de não mudar.
Louvor do Aprender
Aprende o mais simples! Pra aqueles
Cujo tempo chegou
Nunca é tarde de mais!
Aprende o abc, não chega, mas
Aprende-o! E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende, mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Tens de tomar a chefia!Frequenta a escola, homem sem casa!
Arranja saber, homem com frio!
Faminto, pega no livro: é uma arma.
Tens de tomar a chefia.Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça:
Vê c’os teus próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
Não o sabes.
Verifica a conta:
És tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela,
Pergunta: Como aparece isto aqui?
Tens de tomar a chefia.Tradução de Paulo Quintela
Sugestão
Sede assim — qualquer coisa
serena, isenta, fiel.Flor que se cumpre,
sem pergunta.Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.Não como o resto dos homens.