A Louca
A Dias Paredes
Quando ela passa: – a veste desgrenhada,
O cabelo revolto em desalinho,
No seu olhar feroz eu adivinho
O mistério da dor que a traz penada.Moça, tão moça e jå desventurada;
Da desdita ferida pelo espinho,
Vai morta em vida assim pelo caminho,
No sudĂĄrio de mĂĄgoa sepultada.Eu sei a sua histĂłria. – Em seu passado
Houve um drama d’amor misterioso
– O segredo d’um peito torturado –E hoje, para guardar a mĂĄgoa oculta,
Canta, soluça – coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.
Sonetos de Augusto dos Anjos
130 resultadosIdealismo
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade Ă© uma mentira.
Ă. E Ă© por isto que na minha lira
De amores fĂșteis poucas vezes falo.O amor! Quando virei por fim a amĂĄ-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
Ă o amor do sibarita e da hetaĂra,
De Messalina e de Sardanapalo?!Pois Ă© mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
– Alavanca desviada do seu fulcro –E haja sĂł amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!
Ariana
Ela Ă© o tipo perfeito da ariana,
Branca, nevada, pĂșbere, mimosa,
A carne exuberante e capitosa
Trescala a essĂȘncia que de si dimana.As nĂveas pomas do candor da rosa,
Rendilhando-lhe o colo de sultana,
Emergem da camisa cetinosa
Entre as rendas sutis de filigrana.Dorme talvez. Em flĂĄcido abandono
Lembra formosa no seu casto sono
A languidez dormente da indiana,Enquanto o amante pĂĄlido, a seu lado
Medita, a fronte triste, o olhar velado
No Mistério da Carne Soberana
Pecadora
Tinha no olhar cetĂneo, aveludado,
A chama cruel que arrasta os coraçÔes,
Os seios rijos eram dois brasÔes
Onde fulgia o simb’lo do Pecado.Bela, divina, o porte emoldurado
No mĂĄrmore sublime dos contornos,
Os seios brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no colo perfumado.No entanto, esta mulher de grã beleza,
Moldada pela mĂŁo da Natureza,
Tornou-se a pecadora vil. Do fado,Do destino fatal, presa, morria
Uma noute entre as vascas da agonia
Tendo no corpo o verme do pecado!
GĂȘnio Das Trevas LĂșgubres, Acolhe-me
GĂȘnio das trevas lĂșgubres, acolhe-me,
Leva-me o esp’rito dessa luz que mata,
E a alma me ofusca e o peito me maltrata,
E o viver calmo e sossegado tolhe-me!Leva-me, obumbra-me em teu seio, acolhe-me
N’asa da Morte redentora, e Ă ingrata
Luz deste mundo em breve me arrebata
E num pallium de tĂȘnebras recolhe-me!Aqui hĂĄ muita luz e muita aurora,
HĂĄ perfumes d’amor – venenos d’alma –
E eu busco a plaga onde o repouso mora,E as trevas moram, e, onde d’ĂĄgua raso
O olhar nĂŁo trago, nem me turba a calma
A aurora deste amor que Ă© o meu ocaso!
VolĂșpia Imortal
Cuidas que o genesĂaco prazer,
Fome do ĂĄtomo e eurĂtmico transporte
De todas as moléculas, aborte
Na hora em que a nossa carne apodrecer?!NĂŁo! Essa luz radial, em que arde o Ser,
Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continua a arder!Surdos destarte a apĂłstrofes e brados,
Os nossos esqueletos descamados,
Em convulsivas contorçÔes sensuais,Haurindo o gĂĄs sulfĂdrico das covas,
Com essa volĂșpia das ossadas novas
HĂŁo de ainda se apertar cada vez mais!
Eterna MĂĄgoa
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que Ă© triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!NĂŁo crĂȘ em nada, pois, nada hĂĄ que traga
Consolo Ă MĂĄgoa, a que sĂł ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.Sabe que sofre, mas o que nĂŁo sabe
E que essa mĂĄgoa infinda assim nĂŁo cabe
Na sua vida, é que essa mågoa infindaTranspÔe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
Ă essa mĂĄgoa que o acompanha ainda!
Versos A Um Coveiro
Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal Ă©, sem complicados silogismos,
A aritmĂ©tica hedionda dos coveiros!Um, dois, trĂȘs, quatro, cinco… Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fĂșlgidos letreiros,
Na progressĂŁo dos nĂșmeros inteiros
A gĂȘnese de todos os abismos!Oh! PitĂĄgoras da Ășltima aritmĂ©tica,
Continua a contar na paz ascética
Dos tĂĄbidos carneiros sepulcraisTĂbias, cĂ©rebros, crĂąnios, rĂĄdios e Ășmeros,
Porque, infinita como os prĂłprios nĂșmeros
A tua conta nĂŁo acaba mais!
PlenilĂșnio
Desmaia o plenilĂșnio. A gaze pĂĄlida
Que lhe serve de alvĂssimo sudĂĄrio
Respira essĂȘncias raras, toda a cĂĄlida
MĂstica essĂȘncia desse alampadĂĄrio.E a lua Ă© como um pĂĄlido sacrĂĄrio,
Onde as almas das virgens em crisĂĄlida
De seios alvos e de fronte pĂĄlida,
Derramam a urna dum perfume vårio.Voga a lua na etérea imensidade!
Ela, eterna noctĂąmbula do Amor,
Eu, noctĂąmbulo da Dor e da Saudade.Ah! como a branca e merencĂłrea lua,
TambĂ©m envolta num sudĂĄrio – a Dor,
Minh’alma triste pelos cĂ©us flutua!
O Morcego
Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vĂȘde:
Na bruta ardĂȘncia orgĂąnica da sede,
Morde-me a goela Ăgneo e escaldante molho.“Vou mandar levantar outra parede…”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocĂĄ-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tĂŁo feio parto?!A ConsciĂȘncia Humana Ă© este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!