Olhar para as Coisas com alguma Distância

Percorrendo as ruas fui descobrindo coisas espantosas que lá ocorriam desde sempre, disfarçadas sob uma máscara tĂ©nue de normalidade: um viĂşvo que, depois de se reformar, passava as tardes sentado no carro, a porta aberta, a perna esquerda fora, a direita dentro; um sujeito tĂŁo magro que se podia tomar por uma figura de cartĂŁo, ideia reforçada por andar de bicicleta e, sobretudo, por nela carregar o papelĂŁo que recolhia nos contentores do lixo; a mulher que, com uma regularidade cronomĂ©trica, vinha Ă  janela, olhava para um lado e para o outro, como se aguardasse há muito a chegada de alguĂ©m. Eram trĂŞs exemplos de situações que – creio ser esta a melhor formulação – aconteciam desde sempre e pela primeira vez. Se olharmos para as coisas com alguma distância, retirando-as do contexto, deixando-nos contaminar pela estranheza, tudo, tudo mesmo, adquire uma aura macabra e repetitiva, singular, reconhecĂ­vel, que se mistura com a substância dos sonhos, a matĂ©ria das mentes perturbadas. Penso sempre, nĂŁo sei porque, que talvez a resposta esteja naquela revista antiga que nĂŁo resistiu Ă s traças: nos sobreviventes de Hiroxima, no clarĂŁo absoluto que os cegou, no mundo irreal em que foram condenados a viver a partir desse momento,

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