No Teu Colo
No teu colo cabem todos os meus medos.
E se Deus existir, Ă© a calma do teus ombros, o sossego divino que vai do teu pescoço ao teu peito. E eu ali, tĂŁo pequeno que nem meço os centĂmetros que tenho, e ainda assim tĂŁo grande que nem o cĂ©u teria espaço para me guardar assim. Somos criaturas para alĂ©m do mundo, pares Ășnicos de uma viagem que nem o final dos corpos conseguirĂĄ parar.
Até o pior da vida se acalma quando estou nos teus olhos.
HĂĄ pessoas mĂĄs, mĂŁe. Pessoas que nĂŁo imaginam o que Ă© resistir por dentro deste corpo, por trĂĄs destes ossos, sob os escombros de uma idade por descobrir. HĂĄ pessoas que nĂŁo sabem que sou uma criança com medo como todas as crianças (uma pessoa com medo como todas as pessoas: os adultos tambĂ©m tĂȘm medo, nĂŁo tĂȘm, mĂŁe?, toda a gente tem medo, nĂŁo tem, mĂŁe?), e ontem um adulto disse-me para crescer e aparecer, e uma criança menos criança do que eu agarrou-me pelos cabelos e atirou-me ao chĂŁo, a escola toda a olhar e a rir, e o adulto a dizer «cresce e aparece» e a criança a dizer «toma lĂĄ que Ă© para aprenderes».
Textos sobre Céu de Pedro Chagas Freitas
3 resultadosO Teu Céu
Ă em vida que tens o teu cĂ©u. Mas nĂŁo Ă© um cĂ©u prometido. Um cĂ©u prometido Ă© um cĂ©u precavido, um cĂ©u prevenido â um cĂ©u invertido. O que jĂĄ sabes que vai ser cĂ©u Ă© um martĂrio. Se sabes que vai ser cĂ©u: entĂŁo Ă© porque nĂŁo Ă© cĂ©u. Ăs tu que, todos os dias, tens de agarrar nas tuas perninhas e no monte de antĂteses de que Ă©s feito. Ăs tu que tens de rezar pelo teu cĂ©u. Mas rezar nĂŁo Ă© de joelhos. Rezar nem sequer Ă© cruzar os dedos e olhar para o cĂ©u Ă espera de que de lĂĄ caia alguma coisa. O mais inusitado que podes esperar que caia do cĂ©u sĂŁo perdigotos de quem, como tu, pensa que rezar Ă© dizer meia dĂșzia de palavras com os joelhos dobrados e as mĂŁos unidas em forma de impotĂȘncia. Mas rezar nĂŁo Ă© nada disso. Vou-te explicar o que Ă© rezar. Oremos, irmĂŁo.
Rezar nĂŁo Ă© ajoelhar nem Ă© falar nem Ă© esperar. Rezar Ă© lutar. NĂŁo Ă© por acaso que depois de morrer alguĂ©m de quem se gosta se faz o luto. Luto. Ouve bem, lĂȘ bem: sente bem. Luto. Luto.
Tudo o que Somos é Ficção
Hå que entender que tudo o que somos é ficção.
Pessoas atrĂĄs de pessoas pedem-me conselhos. Acreditam que o que escrevo me torna em alguĂ©m especial, capaz de lhes entender o que fazem, o que sentem, atĂ© o que escrevem. Fico perdido, sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. E Ă© por isso que escrevo. Escrever Ă© estar perdido e procurar, a cada frase, um caminho. Ou um simples sinal de que pode haver um caminho, de que pode haver uma esperança. Escrever Ă© procurar a esperança, todos os dias, no que nĂŁo existe, no que se escreve para ver se existe. NĂŁo sou escritor, nunca fui escritor, nĂŁo quero ser escritor. Sou apenas o gajo que escreve porque tem de escrever, porque os dias exigem que escreva, porque uma urgĂȘncia qualquer o obriga a escrever. Escrevo como necessidade biolĂłgica, e Ă s vezes custa tanto ter de escrever. NĂŁo dĂłi mas custa, Ă© uma dor de fora para dentro, como se as letras saĂssem da pele, do por dentro dos ossos. E a literatura. O que raios Ă© a literatura? Estou-me nas tintas para a literatura. NĂŁo quero escrever literatura, nĂŁo quero os intelectuais do meu lado.