Intragável é Estar Parado
Intragável Ă© estar parado. NĂŁo mudar. Aguentar. Sobreviver. Permanecer. Mesmo que seja pouco, mesmo que seja insuficiente. Manter tudo como está apenas para nĂŁo correr o risco de ficar pior. Intragável Ă© nĂŁo perdoar, nĂŁo ilibar. E sĂł criticar, sĂł apontar, sĂł atacar. E nĂŁo criar, nĂŁo refazer, nĂŁo imaginar. Intragável Ă© nĂŁo acreditar. Intragável Ă© o que nĂŁo Ă© maravilhoso, o que nĂŁo Ă© delicioso, o que nĂŁo Ă© fantástico, monumental, abençoado, miraculoso, espantoso. Intragável Ă© acordar para o dia a recusar o dia, a nĂŁo querer o dia, a nĂŁo apetecer o dia, a nĂŁo pensar nas mil e uma maneiras de o tornar inesquecĂvel. Deixar estar. NĂŁo mexer, nĂŁo querer a ferida se for atravĂ©s da ferida que se chega Ă cura. Ser cauteloso, prevenido. Intragável Ă© o que nĂŁo Ă© exagerado, o que nĂŁo Ă© desproporcionado, o que nĂŁo parece incomportável. Se nĂŁo parece incomportável, Ă© insuportável. NĂŁo quero. NĂŁo admito. NĂŁo me admito. Intragável Ă© repetir. Hoje como rĂ©plica exacta de ontem e como rĂ©plica exacta de amanhĂŁ. As mesmas coisas, as mesmas palavras, os mesmos actos, os mesmos movimentos. Sempre igual. Sempre o mesmo. Intragável Ă© continuar por continuar, andar por andar, viver por viver.
Textos sobre Caminhos de Pedro Chagas Freitas
4 resultadosHá lá Coisa Melhor?
Há lá coisa melhor do que duas mãos que se beijam?
A mĂŁo dela tinha Deus dentro. Apertava-a, beijava-a com a minha mĂŁo apressada, com a minha mĂŁo urgente, a minha mĂŁo como se numa ambulância, e percorrĂamos as ruas mesmo que fossem as ruas que nos percorressem a nĂłs, simples corpos sorridentes
Há lá coisa melhor do que dois corpos que se sorriem?
Sabia, com cada um dos meus dedos, com cada uma das minhas mĂŁos, todos os riscos e ranhuras da mĂŁo dela; era ali, no por dentro das mĂŁos que tocava, que ouvia as novidades, que lia os tĂtulos das notĂcias, de todas as notĂcias que me importavam
Há lá coisa melhor do que ler as notĂcias na mĂŁo que se ama?
Não havia, nos passos que dávamos, qualquer distância andada, nem sequer um caminho a andar; éramos caminhantes de andar, viajantes do nosso tempo. E acreditávamos, todos os dias, em todas as respirações que respirávamos no espaço das nossas mãos, que o tempo era apenas o instante em que, juntos, parávamos o tempo
Há lá coisa melhor do que o instante em que se pára o tempo?
Tudo o que Somos é Ficção
Há que entender que tudo o que somos é ficção.
Pessoas atrás de pessoas pedem-me conselhos. Acreditam que o que escrevo me torna em alguĂ©m especial, capaz de lhes entender o que fazem, o que sentem, atĂ© o que escrevem. Fico perdido, sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. E Ă© por isso que escrevo. Escrever Ă© estar perdido e procurar, a cada frase, um caminho. Ou um simples sinal de que pode haver um caminho, de que pode haver uma esperança. Escrever Ă© procurar a esperança, todos os dias, no que nĂŁo existe, no que se escreve para ver se existe. NĂŁo sou escritor, nunca fui escritor, nĂŁo quero ser escritor. Sou apenas o gajo que escreve porque tem de escrever, porque os dias exigem que escreva, porque uma urgĂŞncia qualquer o obriga a escrever. Escrevo como necessidade biolĂłgica, e Ă s vezes custa tanto ter de escrever. NĂŁo dĂłi mas custa, Ă© uma dor de fora para dentro, como se as letras saĂssem da pele, do por dentro dos ossos. E a literatura. O que raios Ă© a literatura? Estou-me nas tintas para a literatura. NĂŁo quero escrever literatura, nĂŁo quero os intelectuais do meu lado.
A Grande Vantagem da Vida
– A grande vantagem da vida Ă© ensinar-nos outra vez a chorar. A vida infantiliza. Fica-se maior no que nos faz ser mais pequenos. Cresce-se fora o que se vai perdendo por dentro. Passamos a infância a querer crescer, a adolescĂŞncia a querer crescer. E depois percebemos que sĂł quer crescer quem ainda se sente pequeno. Um adulto sente-se pequeno mas pensa ao contrário. Sente-se pequeno e quer ficar mais pequeno. Voltar ao tempo em que havia sonhos.
– Onde se perdem os sonhos?
– Todos os sonhos se perdem. Mesmo aqueles que vais ganhar, e vais ganhar muitos, se vão perder. Porque já deixaram de ser sonhos. Sonhaste aquilo, tiveste aquilo. E acabou. Lá se foi o sonho. O segredo é conseguir gerar novos sonhos. Sonhos que consigam ocupar o espaço em branco deixado pelo sonho perdido.
– Mesmo que tenha sido ganho.
– Mesmo que tenha sido ganho.
– Queria ser como tu.
– E eu queria ser como tu. Queria olhar para a frente e ver que o caminho não acaba, o caminho a perder de vista.
– O teu não se perde de vista?
– O meu faz-me perder a vista.