Textos sobre Luxo de Miguel Esteves Cardoso

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Textos de luxo de Miguel Esteves Cardoso. Leia este e outros textos de Miguel Esteves Cardoso em Poetris.

A Vida é uma Eternidade

Sabemos que vamos morrer e que estaremos mortos tanto tempo como não estivemos à espera para nascer. É banal dizer-se que a vida é um intervalo ou uma passagem ou um instante. Não é. A vida é uma excepção generosamente comprida à regra nem triste nem alegre da inexistência.
A vida está para o nada como o planeta Terra está para o sistema solar a que pertence. Sim, pode haver vida noutros planetas. Mas será uma vida que vale a pena viver? Ou que apenas vale a pena estudar?

Sabemos que temos muito tempo de vida: muito mais do que precisamos. O direito à preguiça e à procrastinação está consagrado na nossa vida e faz logo, à partida, parte dela.
Sabemos que somos obrigados a pensar, errada e repetidamente, que o tempo em que estamos vivos é importante. E que as nossas noções de declínio (“dantes é que era bom; os jovens de hoje não sabem o que perdem”) são lugares-comuns de todas as gerações antes de nós.

Sabemos que não há ninguém que não envelheça, desde o bebé que nasceu neste segundo até ao velho que, por ter morrido agora mesmo, deixou de envelhecer.

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O Segredo dos Dias

Quando há muito para fazer, que é sempre, o melhor é fazer como se nada houvesse para fazer e deixar tudo para o pouco tempo – que infelizmente tem de ser medido – que resta para fazê-lo.
Nos dias de maior trabalho, permita-se o maior luxo. Não depois, mas antes. Ou melhor: antes para quem sente que roubou um pecado e tem de pagá-lo e depois para quem sente que merece uma recompensa por ter trabalhado tanto.

Os seres humanos dividem-se entre os castigadores e os recompensadores. Talvez os primeiros sejam mais judeus e católicos e os segundos mais islâmicos e protestantes.
Para os castigadores o trabalho é o preço que se paga pelo prazer, pelo adiamento, pelo facto de não ter investido o tempo bastante para tentar urdir um resultado perfeito.
Para os recompensadores primeiro trabalha-se e depois celebra-se o ter trabalhado.

Só agora me ocorre, tarde na vida, que ambas as atitudes são oprimentes, tornando-nos em porquinhos-da-índia que comem conforme põem a roda que está na jaula em movimento.
É um erro equiparar o trabalho ao prazer, seja anterior ou posterior. O trabalho é sempre um sofrimento, um esforço, uma coisa que,

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A Felicidade é uma Interrupção de Futilidade

É nas decisões fúteis, das quais nem a vida nem o estado de espírito depende, que reside a felicidade.
São estes os dias felizes, que Beckett invoca e amaldiçoa, por terem passado, na peça que tem o mesmo nome. Somos sobressaltados por ninharias, que conseguem fazer-se passar por importantes, como escolher entre uma camisa do verde do mar ou do azul do céu.
As decisões fúteis, quando a cabeça é desocupada daquilo que a preocupa, para se ocupar de uma ninharia, como decidir entre o ruivo ou o rascasso ou entre a pêra -pérola e a carapinheira, são o indício seguro da felicidade. Se a escolha primária é entre continuar a viver e deixar de viver e as escolhas secundárias são afluentes da primeira, devemos dar graças.
São uma sorte temporária e alegre a oportunidade e a ocupação mental que nos permitem pensar mais naquilo que nos interessa, sem interessar, do que naquilo que nos deveria interessar, caso estivéssemos tão aflitos que não conseguíssemos pensar noutra coisa senão sobreviver.
Quanto mais tempo perdermos nas escolhas e nas questões de que não dependem as nossas vidas ou as nossas almas – naquelas que não interessam, a bem ver,

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O Amor é um Exagerador

As coisas boas, como o amor e a sabedoria, não trazem a felicidade pela simples razão que as coisas boas têm, para ser boas, de ser «boas por si mesmas». Não podem ser boas por aquilo que trazem. Pelo contrário, têm um preço. O mais das vezes, o preço do amor e da sabedoria, ambos artigos finos, artigos de luxo, coisas boas, é a infelicidade. Quando se ama, ou quando se estuda muito, fica-se sujeito às vontades e às verdades mais alheias. Nada depende quase nada de nós. E sofre-se. Irritam as pessoas que esperam que o amor traga a felicidade. É como esperar que os morangos tragam as natas. O amor não é um meio para atingir um fim — não é através do amor que se chega à felicidade. O amor é um exagerador — exagera os êxtases e as agonias, torna tudo o que não lhe diz respeito (o mundo inteiro) numa coisa pequenina. Assim como a arte tem de ser pela arte e a ciência pela ciência (seria um horror ouvir alguém dizer «Eu quero ser pintor ou biólogo para ganhar muito dinheiro e ir a muitas festas e ter duas carrinhas Volvo com galgos do Afeganistão lá dentro»),

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O Tempo Vale Muito Mais do que o Dinheiro

Perder tempo não é como gastar dinheiro. Se o tempo fosse dinheiro, o dinheiro seria tempo.
Não é. O tempo vale muito mais do que o dinheiro. Quando morremos, acaba-se o tempo que tivemos. Quando morremos, o que mais subsiste e insiste é a quantidade de coisas que continuam a existir, apesar de nós.
O nosso tempo de vida é a nossa única fortuna. Temos o tempo que temos. Depois de ter acabado o nosso tempo, não conseguimos comprar mais. Quando morreu o meu pai, foi-se com ele todo o tempo que ele tinha para passar connosco. As coisas dele ficaram para trás. Sobreviveram. Eram objectos. Alguns tinham valor por fazer lembrar o tempo que passaram com ele – a régua de arquitecto naval, os relógios – quando ele tinha tempo.
As pessoas dizem «time is money» para apressar quem trabalha. A única maneira de comprar tempo é de precisar de menos dinheiro para viver, para poder passar menos tempo a ganhá-lo. E ficar com mais tempo para trabalhar no que dá mais gosto e para ter o luxo indispensável de poder perder tempo, a fazer ninharias e a ser-se indolente.
A ideologia dominante de aproveitar bem o tempo impede-nos de perder esses tempos.

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Amigos para Sempre

Os amigos cada vez mais se vêem menos. Parece que era só quando éramos novos, trabalhávamos e bebíamos juntos que nos víamos as vezes que queríamos, sempre diariamente. E, no maior luxo de todos, há muito perdido: porque não tínhamos mais nada para fazer.
Nesta semana, tenho almoçado com amigos meus grandes, que, pela primeira vez nas nossas vidas, não vejo há muitos anos. Cada um começa a falar comigo como se não tivéssemos passado um único dia sem nos vermos.
Nada falha. Tudo dispara como se nos estivera – e está – na massa do sangue: a excitação de contar coisas e partilhar ninharias; as risotas por piadas de há muito repetidas; as promessas de esperanças que estão há que décadas por realizar.
Há grandes amigos que tenho a sorte de ter que insistem na importância da Presença com letra grande. Até agora nunca concordei, achando que a saudade faz pouco do tempo e que o coração é mais sensível à lembrança do que à repetição. Enganei-me. O melhor que os amigos e as amigas têm a fazer é verem-se cada vez que podem. É verdade que, mesmo tendo passado dez anos, sente-se o prazer inencontrável de reencontrar quem se pensava nunca mais encontrar.

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