Textos sobre Mundo de Vergílio Ferreira

26 resultados
Textos de mundo de Vergílio Ferreira. Leia este e outros textos de Vergílio Ferreira em Poetris.

O Desperdício

O desperdício. Ele é a faixa mais larga de todo o acontecer no universo. E na vida. Quanta energia se esgota até ao seu nada, para ter razão esse tal segundo princípio da termodinâmica. Que mundo incrível se perdeu com as pessoas que se não cumpriram, que fracção enorme do cérebro ficou sem aplicação. E numa simples vida, que gasto enorme no comer e no dormir. Nós podíamos ser como as plantas de raízes aéreas e que só comem ar. Ou ser como o sol, que não dorme. Ou Deus que também não, até há pouco. Mas nessa desproporção alucinante entre o que se desperdiça e o que se aproveita, o homem cria o espaço para ser maior que o universo. Porque foi preciso o homem para o universo nascer. Tudo tão pouco.

O Homem não Deseja a Paz

Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego colectivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em acção. Da paz se diz que é «podre», porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inactividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.

Continue lendo…

Só o Homem Sabe que é Mortal

A única certeza da vida é a morte. E é a certeza em que menos se acredita. Toda a história do mundo assentou sempre na ignorância de que se é mortal. Aqueles mesmo que o sabem não o vêem — a não ser em instantes de excepção. Que seria o mundo com essa evidência sempre presente? Só o homem sabe que é mortal. Mas raramente o homem sobe até si. O animal pesa nele, mesmo no que não é do animal. Assim a arte, a cultura, poucas vezes funcionam como o que é para o espírito, sendo para o que é da nossa grosseria.

A Nossa Morte

O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo. Mesmo que sejas uma personagem histórica, tudo entra de novo na rotina como se nem tivesses existido. O que mais podem fazer-te é tomar nota do acontecimento e recomeçar. Quando morre um teu amigo ou conhecido, a vida continua natural como se quem existisse para morrer fosses só tu. Porque tudo converge para ti, em quem tudo existe, e assim te inquieta a certeza de que o universo morrerá contigo. Mas não morre. Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não. E isso é que é incompreensível – morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma. Tudo isto tem significado para o teu presente. Mas recua duzentos anos e verás que nada disto tem já significado.

A Solidão do Artista

Diz-se às vezes de certas pessoas, e para isso se reprovar, que têm dupla personalidade. Mas dupla ou múltipla têm-na normalmente os artistas. Ela é pelo menos a do convívio exterior e a do seu intimismo. Se trazem esta para a rua, são quase sempre insuportáveis. Só se suporta o que é de um profundo interesse, quando isso é rentável. Imagino que o capitalista tenha na sua vida íntima um mundo de cifrões. Se o cifrão vier à rua, tem ainda cotação. Mas o artista? Mesmo a coisa minúscula da sua pequena vaidade é irritante. Um político pode blasonar pimponice, que tem adeptos a aplaudir. O artista é um condenado, com o ferrete da ignomínia. O seu dever social é ocultar a degradação ou então marginalizar-se. Para efeitos cívicos ou mundanos, só depois de bem morto. A solidão é assim o seu destino. Aí sofre ou tem alegrias, aí obedece a um estranho mandato que lhe passaram na eternidade. Discreto, envergonhado, todo o seu esforço, no domínio das relações, é esconder a sua mancha. Nenhum povo existe senão pelo seu espírito. Somos o que somos pelo que foi excepção dos que nos precederam. Mas o dia a dia não é espiritual,

Continue lendo…

A Divinização do Utilitário

O grande conflito de hoje, no domínio socioeconómico, por exemplo, e contra a previsão de um Marx, não é o que opõe o Capital e o Trabalho, mas o que comanda a máquina e o que a serve (François Perroux). Mas o efeito mais visível, porque mais extenso, da sua compacta presença, é o que degrada os sonhos ao tangível e utilitário que define a vituperada «sociedade de consumo». Não é assim o útil ou utili­tário que se condena: é a sua divinização. O que surpreende no mundo de hoje não é a sedução da comodidade, mas que ela esgote todas as seduções; não é o sonho de «viver bem», mas que só se viva bem com esse sonho. Decerto o viver bem foi sempre um sonho de quem teve por sorte o viver mal. Mas a realização em massa dessa ambição instaura-se em plena força como modelo. E não apenas por ser uma realização em massa, mas porque aos «responsáveis» nenhum valor se impõe para a esse imporem. O utilitarismo é um valor negativo; mas con­verte-se em positivo pela negatividade de quem poderia recusá­-lo. O que nos «irresponsáveis» é uma ambição em positivo, é nos «responsáveis» uma aceitação em negativo,

Continue lendo…