Coerção e Autocoerção
Os casos e acontecimentos que nos dizem respeito aparecem e entrecruzam-se isoladamente, sem ordem nem relação uns com os outros, no mais vivo contraste e sem nada em comum, a não ser justamente o facto de se relacionarem connosco. Dessa maneira, para corresponder a esses casos e acontecimentos, os nossos pensamentos e cuidados têm igualmente de estar desligados uns dos outros. Como consequência, quando empreendemos algo, temos de nos abstrair de tudo o resto, para então tratar cada coisa a seu tempo, fruí-la e senti-la, sem demais preocupações. Precisamos ter, por assim dizer, compartimentos para os nossos pensamentos e abrir apenas um deles, enquanto os outros permanecem fechados. Desse modo, conseguimos impedir que uma preocupação muito grave roube cada pequeno prazer do presente, despojando-nos de toda a tranquilidade.
Conseguimos ainda fazer com que uma ponderação não reprima a outra, que a preocupação com um caso importante não produza a negligência de muitos de menor relevância, e assim por diante. Mas sobretudo o homem capaz de considerações elevadas e nobres nunca pode deixar o seu espírito ser totalmente possuído e absorvido por casos pessoais e preocupações triviais, a ponto de impedir o acesso às altas considerações, pois isso, de facto,
Textos sobre Sábios
179 resultadosUma Nova Etapa na Vida a partir da Leitura de um Livro
Somos subeducados, atrasados e analfabetos; e neste particular confesso que não faço grande distinção entre a ignorância do meu concidadão que não sabe absolutamente ler nada, e a ignorância do que apenas aprendeu a ler o que se destina a crianças e inteligências medíocres. Deveríamos estar à altura dos grandes da Antiguidade, mas em parte por saber primacialmente quão grandes eles foram. Somos uma raça de homens-passarinhos; nos nossos voos intelectuais mal nos alçamos um pouco acima das colunas do jornal.
Nem todos os livros são tão insípidos como os seus leitores. É provável que haja palavras endereçadas exactamente à nossa condição, as quais, se de facto pudéssemos ouvi-las e entendê-las, seriam mais salutares às nossas vidas que a própria manhã ou a Primavera, revelando-nos talvez uma face inédita das coisas.
Quantos homens não inauguraram uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro! Deve existir para nós o livro capaz de explicar os nossos mistérios e de revelar outros insuspeitados. As coisas que ora nos parecem inexprimíveis, podemos encontrá-las expressas algures.
As mesmas questões que nos inquietam, intrigam e confundem, foram postas por sua vez a todos os homens sábios; nenhuma foi omitida,
Se ao menos calásseis, tomar-vos-iam por sábios
Se ao menos calásseis, tomar-vos-iam por sábios.
Saber Terminar uma Amizade Indesejável
Sucede, também, como por calamidade, que algumas vezes é necessário romper uma amizade: porque passo agora das amizades dos sábios às ligações vulgares. Muitas vezes quando os vícios se revelam num homem, os seus amigos são as suas vítimas como todos os outros: contudo é sobre eles que recai a vergonha. É preciso, pois, desligar-se de tais amizades —, afrouxando o laço pouco a pouco e, como ouvi dizer a Catão, é necessário descoser antes que despedaçar, a menos que se não haja produzido um escândalo de tal modo intolerável, que não fosse nem justo nem honesto, nem mesmo possível, deixar de romper imediatamente.
Mas se o carácter e os gostos vierem a mudar, o que acontece muitas vezes; se algum dissentimento político separar dois amigos (não falo mais, repito-o, das amizades dos sábios, mas das afeições vulgares), é preciso tomar cuidado em, desfazendo a amizade, não a substituir logo pelo ódio. Nada mais vergonhoso, com efeito, que estar em guerra com aquele que se amou por muito tempo.
(…) Apliquemo-nos, pois, antes de tudo, em afastar toda a causa de ruptura: se contudo, acontecer alguma, que a amizade pareça antes extinta do que estrangulada. Temamos sobretudo que ela não se transforme em ódio violento,
O Perigo do Especialista
O especialista serve-nos para concretizar energicamente a espécie e fazer ver todo o radicalismo da sua novidade. Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é «um homem de ciência» e conhece muito bem a sua fracção de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.
E, com efeito, este é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências tomará posições de primitivo, e ignorantíssimo; mas tomará essas posições com energia e suficiência, sem admitir – e isto é o paradoxal – especialistas dessas coisas. Ao especializá-lo a civilização tornou-o hermético e satisfeito dentro da sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e valia vai levá-lo a querer predominar fora da sua especialidade.
Máximo de Felicidade no Máximo de Lucidez
O que é a sabedoria? É a felicidade na verdade, ou «a alegria que nasce da verdade». Esta é a expressão que Santo Agostinho utiliza para definir a beatitude, a vida verdadeiramente feliz, em oposição ás nossas pequenas felicidades, sempre mais ou menos factícias ou ilusórias. Sou sensível ao facto de que é a mesma palavra beatitude que Espinoza retomará, bem mais tarde, para designar a felicidade do sábio, a felicidade que não é a recompensa da virtude mas a própria virtude… a beatitude é a felicidade do sábio, em oposição às felicidades que nós, que não somos sábios, conhecemos comumente, ou, digamos, às nossas aparências de felicidade, que às vezes são alimentadas por drogas ou álcoois, muitas vezes por ilusões, diversão ou má-fé. Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remedinhos, estimulantezinhos… não sejamos severos demais. Nem sempre podemos dispensá-los. Mas a sabedoria é outra coisa. A sabedoria seria a felicidade na verdade.
A sabedoria? É uma felicidade verdadeira ou uma verdade feliz. Não façamos disso um absoluto, porém. Podemos ser mais ou menos sábios, do mesmo modo que podemos ser mais ou menos loucos. Digamos que a sabedoria aponta para uma direcção: a do máximo de felicidade no máximo de lucidez.
O Nobre Patriotismo dos Patriotas
Há em primeiro lugar o nobre patriotismo dos patriotas: esses amam a pátria, não dedicando-lhe estrofes, mas com a serenidade grave e profunda dos corações fortes. Respeitam a tradição, mas o seu esforço vai todo para a nação viva, a que em torno deles trabalha, produz, pensa e sofre: e, deixando para trás as glórias que ganhámos nas Molucas, ocupam-se da pátria contemporânea, cujo coração bate ao mesmo tempo que o seu, procurando perceber-lhe as aspirações, dirigir-lhe as forças, torná-la mais livre, mais forte, mais culta, mais sábia, mais próspera, e por todas estas nobres qualidades elevá-la entre as nações. Nada do que pertence à pátria lhes é estranho: admiram decerto Afonso Henriques, mas não ficam para todo o sempre petrificados nessa admiração: vão por entre o povo, educando-o e melhorando-o, procurando-lhe mais trabalho e organizando-lhe mais instrução, promovendo sem descanso os dois bens supremos – ciência e justiça.
Põem a pátria acima do interesse, da ambição, da gloríola; e se têm por vezes um fanatismo estreito, a sua mesma paixão diviniza-os. Tudo o que é seu o dão à pátria: sacrificam-lhe vida, trabalho, saúde, força, o melhor de si mesmo. Dão-lhe sobretudo o que as nações necessitam mais,
Amizade Correcta
O sábio, ainda que se baste a si mesmo, deseja ter um amigo, quanto mais não fosse para exercer a amizade, para não deixar definhar tão grande virtude. Ele não busca, como dizia Epicuro, «alguém que lhe vele à cabeceira em caso de doença, que o socorra quando esteja em grilhões ou na indigência». Busca alguém a cuja cabeceira de doente possa velar; alguém que, quando implicado numa contenda, ele possa salvar dos cárceres inimigos. Pensar em si próprio, e empenhar-se numa amizade com esse pensamento preconcebido, é cometer um erro de cálculo. A empresa terminará como começou. Fulano arranjou um amigo para dispor, um dia, de um libertador que o preserve dos grilhões. Ao primeiro tinido de cadeias, lá se vai o amigo.
Tais são as amizades que o mundo chama de «ligações temporárias». O homem a quem se escolhe para prestar serviços deixará de agradar no dia em que não sirva para mais nada. Daí a constelação de amigos ao redor das grandes fortunas. Vinda a ruína, faz-se, à volta, a solidão: os amigos esquivam-se dos lugares onde são postos à prova. Daí, todos esses escândalos: amigos abandonados, amigos traídos, sempre por medo! É inevitável que o fim concorde com o começo: o interesse fez de sicrano teu amigo;
Vida Ilusória
Ao mesmo tempo que a realidade é uma fábula, simulações e enganos são considerados como as verdades mais sólidas. Se os homens se detivessem a observar apenas as realidades, e não se permitissem ser enganados, a vida, comparada com as coisas que conhecemos, seria como um conto de fadas ou as histórias das Mil e Uma Noites.
Se respeitássemos apenas o que é inevitável e tem direito a ser, a música e a poesia ressoariam pelas ruas fora. Quando somos calmos e sábios, percebemos que só as coisas grandes e dignas têm existência permanente e absoluta, que os pequenos medos e os pequenos prazeres não passam de sombra da realidade, o que é sempre estimulante e sublime. Por fecharem os olhos e dormirem, por consentirem ser enganados pelas aparências, os homens em toda a parte estabelecem e confinam as suas vidas diárias de rotina e hábito em cima de fundações puramente ilusórias.
O insensato expande as suas paixões todas, mas o sábio reprime-as e acalma-as
O insensato expande as suas paixões todas, mas o sábio reprime-as e acalma-as.
Saber Zangar-se
O que me parece é que as pessoas, em geral, como que deixaram de saber zangar-se. Deixaram de saber zangar-se com aquilo que consideram errado – e, pior ainda, deixaram de saber dizê-lo na cara umas das outras. A não ser, naturalmente, que haja uma agenda.
Ainda nos zangamos muito, é verdade. Mas zangamo-nos mal. Com a maior das facilidades nos zangamos contra inimigos abstractos, como «o Governo», «o capitalismo selvagem» ou mesmo apenas «a crise». Com a maior das facilidades nos zangamos com aqueles que entendemos como nossos subordinados, no trabalho e na vida em geral (afinal, os nossos «superiores» acabam de pôr-nos a pata em cima. alguém vai ter de pagar a conta). Com aqueles que estão, de alguma forma, em ascendente sobre nós, já não nos zangamos: amuamos, que é a forma mais cobarde de nos zangarmos. Aos nossos iguais simplesmente não dizemos nada: engolimos e tornamos a engolir, convencendo-nos de que do outro lado está, afinal, um pobre diabo, tão pobre que nem sequer merece uma zanga – e, quando enfim nos zangamos, é para dar-lhe um tiro na cabeça, como todos os dias nos mostram os jornais.
A impressão com que eu fico é que tudo isto vem dessa mania das social skills e do team building e dos demais chavões moderninhos que os gurus dos livros de Economia nos enfiaram pela garganta abaixo,
Felicidade e Prazer
Devemos estudar os meios de alcançar a felicidade, pois, quando a temos, possuímos tudo e, quando não a temos, fazemos tudo por alcançá-la. Respeita, portanto, e aplica os princípios que continuadamente te inculquei, convencendo-te de que eles são os elementos necessários para bem viver. Pensa primeiro que o deus é um ser imortal e feliz, como o indica a noção comum de divindade, e não lhe atribuas jamais carácter algum oposto à sua imortalidade e à sua beatitude. Habitua-te, em segundo lugar, a pensar que a morte nada é, pois o bem e o mal só existem na sensação. De onde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte nada ser nos permite fruir esta vida mortal, poupando-nos o acréscimo de uma ideia de duração eterna e a pena da imortalidade. Porque não teme a vida quem compreende que não há nada de temível no facto de se não viver mais. É, portanto, tolo quem declara ter medo da morte, não porque seja temível quando chega, mas porque é temível esperar por ela.
É tolice afligirmo-nos com a espera da morte, visto ser ela uma coisa que não faz mal, uma vez chegada. Por conseguinte, o mais pavoroso de todos os males,
Ter Opiniões Definidas e Certas
Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido – tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um facto, de a materializar e tornar exterior. Viver num doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio é o único modo de vida que a um sábio convém e aquece.
A Vida Que Nos Escapa Entre os Dedos
Volta-se o rico para os prazeres da carne e a maior parte do mundo faz o mesmo. E não sem acerto, porque todas as coisas agradáveis devem ser tidas como inocentes, e até que se provem culpadas todas as presunções pendem a seu favor. A vida já é bastante penosa para que ainda a agravemos com proibições e obstáculos aos seus deleites; tão arisca se mostra a felicidade que todas as portas por onde ela queira entrar devem permanecer escancaradas. A carne enfraquece muito precocemente – e os olhos olham com melancolia para os prazeres de outrora. Muito rápidamente todas as alegrias perdem a vivacidade – e admiramo-nos de como pudessem ter-nos interessado tanto. O próprio amor torna-se grotesco logo que atinge os seus fins. Guardemos o ascetismo para a estação própria – a velhice.
É este o grande drama do prazer; todas as coisas agradáveis acabam por amargar; todas as flores murcham quando as colhemos, e o amor morre tanto mais depressa quanto é mais retribuído. Por isso o passado parece-nos sempre melhor que o presente; esquecemos os espinhos das rosas colhidas; saltamos por cima dos insultos e injúrias e demoramo-nos sobre as vitórias. O presente parece muito mesquinho diante de um passado do qual só retemos na memória o bom,
O desejo é capaz de cegar, até um sábio.
Somos Traídos pela Nossa Própria Percepção e Experiência
Vemos muito bem que as coisas não se alojam em nós com a sua forma e essência, e não penetram em nós pela sua própria força e autoridade; porque, se assim fosse, recebê-las-íamos do mesmo modo: o vinho seria o mesmo na boca do doente e na boca do homem são. Quem tem os dedos gretados, ou que os tem entorpecidos, encontraria na lança ou na espada que maneja uma rigidez semelhante à que o outro encontra. Os objetos externos rendem-se então à nossa mercê; alojam-se em nós como nos apraz. Ora, se da nossa parte recebêssemos alguma coisa sem alteração, se as faculdades humanas fossem bastante capazes e firmes para apreender a verdade pelos nossos próprios meios, esses meios sendo comuns a todos os homens, essa verdade se transmitiria de mão em mão de um para outro. E pelo menos se encontraria uma coisa no mundo, entre tantas que há, que seria acreditada pelos homens por um consenso universal. Mas o facto de não se ver proposição alguma que não seja debatida e controversa entre nós, ou que não o possa ser, mostra bem que o nosso julgamento natural não apreende muito claramente aquilo que apreende; pois o meu julgamento não pode fazer com que isso seja aceite pelo julgamento do meu companheiro,
Conta Comigo Sempre
Conta comigo sempre. Desde a sílaba inicial até à última gota de sangue. Venho do silêncio incerto do poema e sou, umas vezes constelação e outras vezes árvore, tantas vezes equilíbrio, outras tantas tempestade. A nossa memória é um mistério, recordo-me de uma música maravilhosa que nunca ouvi, na qual consigo distinguir com clareza as flautas, os violinos, o oboé.
O sonho é, e será sempre e apenas, dos vivos, dos que mastigam o pão amadurecido da dúvida e a carne deslumbrada das pupilas. Estou entre vazios e plenitudes, encho as mãos com uma fragilidade que é um pássaro sábio e distraído que se aninha no coração e se alimenta de amor, esse amor acima do desejo, bem acima do sofrimento.
Conta comigo sempre. Piso as mesmas pedras que tu pisas, ergo-me da face da mesma moeda em que te reconheço, contigo quero festejar dias antigos e os dias que hão-de vir, contigo repartirei também a minha fome mas, e sobretudo, repartirei até o que é indivisível. Tu sabes onde estou.
Sabes como me chamo. Estarei presente quando já mais ninguém estiver contigo, quando chegar a hora decisiva e não encontrares mais esperança, quando a tua antiga coragem vacilar.
Os Sábios Célebres
Todos vós, os sábios célebres, nunca fostes mais do que os servidores do povo e da superstição popular, e não os servidores da verdade. E é precisamente por isso que vos têm honrado.
E por isso também foi tolerada a vossa incredulidade, porque parecia uma brincadeira, um rodeio engenhoso que vos levava ao povo. Assim o amo dá maior liberdade aos seus escravos e regozija-se até com a sua presunção.
Mas aquele que o povo odeia, com o ódio do lobo pelos cães, é o espírito livre, inimigo das algemas, aquele que não adora, aquele que habita as florestas.
Persegui-lo até ao seu esconderijo, é aquilo a que o povo, sempre chamou ter o «sentido de justiça»; e ainda por cima dão caça ao solitário com os seus ferozes mastins.
‘Porque a verdade está onde o povo está! Ai daqueles que a procuram!’ – é isto o que ecoa através dos tempos.
Queríeis assentar na razão a piedade tradicional do vosso povo e é a isso que chamais «a vontade de verdade», ó sábios célebres!
E o vosso coração insiste em dizer para si próprio: ‘Eu vim do povo, foi também do povo que me veio a voz de Deus.’
A Gloriola do Jornal
O jornal estende sobre o mundo as suas duas folhas, salpicadas de preto, como aquelas duas asas com que os iconografistas do século XV representavam a Luxúria ou a Gula: e o Mundo todo se arremessa para o jornal, se quer agachar sob as duas asas que o levem à gloriola, lhe espalhem o nome pelo ar sonoro. E é por essa gloriola que os homens se perdem, e as mulheres se aviltam, e os Políticos desmancham a ordem do Estado, e os Artistas rebolam na extravagância estética, e os Sábios alardeiam teorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os géneros, surge a horda ululante dos charlatães… (Como me vim tornando altiloquente e roncante!…) Mas e a verdade, meu Bento! Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados! (Homenzinhos de letras, poetisas, dentistas, etc.). O próprio mal apetece sofregamente as sete linhas que o maldizem. Para aparecerem no jornal, há assassinos que assassinam. Até o velho instinto da conservação cede ao novo instinto da notoriedade – e existe tal maganão, que ante um funeral convertido em apoteose pela abundância das coroas, dos coches e dos prantos oratórios, lambe os beiços, pensativo, e deseja ser o morto.
Talento não é Sabedoria
Deixa-me dizer-te francamente o juízo que eu formo do homem transcendente em génio, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes. O homem de talento é sempre um mau homem. Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos e sábios. Deixá-los proclamar. O talento não é sabedoria. Sabedoria é o trabalho incessante do espírito sobra a ciência. O talento é a vibração convulsiva de espírito, a originalidade inventiva e rebelde à autoridade, a viagem extática pelas regiões incógnitas da ideia. Agostinho, Fénelon, Madame de Staël e Bentham são sabedorias. Lutero, Ninon de Lenclos, Voltaire e Byron são talentos.
Compara as vicissitudes dessas duas mulheres e os serviços prestados à humanidade por esses homens, e terás encontrado o antagonismo social em que lutam o talento com a sabedoria. Porque é mau o homem de talento ? Essa bela flor porque tem no seio um espinho envenenado ? Essa esplêndida taça de brilhantes e ouro porque é que contém o fel, que abrasa os lábios de quem a toca ? Aqui tens um tema para trabalhos superiores à cabeça de uma mulher, ainda mesmo reforçada por duas dúzias de cabeças académicas !