O Homem Certo
Hoje, numa Ă©poca em que se misturam todos os discursos, em que profetas e charlatĂŁes usam as mesmas fĂłrmulas com mĂnimas diferenças, cujo percurso nenhum homem ocupado tem tempo de seguir, num tempo em que as redacções dos jornais sĂŁo constantemente incomodadas por gente que acha que Ă© um gĂ©nio, Ă© muito difĂcil ajuizar do valor de um homem ou de uma ideia. Temos de nos deixar guiar pelo ouvido para podermos perceber se os rumores, os sussurros e o raspar de pĂ©s diante da porta da redacção sĂŁo suficientemente fortes para poderem ser admitidos como voz da polis. A partir desse momento, porĂ©m, o gĂ©nio passa a outra condição. Deixa de ser matĂ©ria fĂştil da crĂtica literária ou teatral, cujas contradições os leitores que qualquer jornal deseja ter levam tĂŁo pouco a sĂ©rio como a tagarelice de uma criança, para aceder ao estatuto de factos concretos, com todas as consequĂŞncias que isso tem.
Certos fanáticos insensatos ignoram a necessidade desesperada de idealismo que se esconde por detrás de tal situação. O mundo dos que escrevem porque têm de escrever está cheio de grandes palavras e conceitos que perderam a substância. Os atributos dos grandes homens e das grandes causas sobrevivem ao que quer que seja que lhes deu origem,
Textos sobre Substância de Robert Musil
4 resultadosO EspĂrito Desfaz a Ordem das Coisas
O espĂrito aprendeu que a beleza nos faz bons, maus, estĂşpidos ou sedutores. Disseca uma ovelha e um penitente e encontra em ambos humildade e paciĂŞncia. Analisa uma substância e descobre que, tomada em grandes quantidades, pode ser um veneno, e em pequenas doses, um excitante. Sabe que a mucosa dos lábios tem afinidades com a do intestino, mas tambĂ©m sabe que a humildade desses lábios tem afinidades com a humildade de tudo o que Ă© sagrado. O espĂrito desfaz a ordem das coisas, dissolve-as e volta a recompĂ´-las de forma diferente. O bem e o mal, o que está em cima e o que está em baixo nĂŁo sĂŁo para ele noções de um relativismo cĂ©ptico, mas termos de uma função, valores que dependem do contexto em que se encontram. Os sĂ©culos ensinaram-lhe que os vĂcios se podem transformar em virtudes e as virtudes em vĂcios, e conclui que, no essencial, sĂł por inĂ©pcia se nĂŁo consegue fazer de um criminoso um homem Ăştil no tempo de uma vida. NĂŁo reconhece nada como lĂcito ou ilĂcito, porque tudo pode ter uma qualidade graças Ă qual um dia participará de um novo e grande sistema. Odeia secretamente como a morte tudo aquilo que se apresenta como se fosse definitivo,
A Superficialidade dos Grandes EspĂritos
NĂŁo há nada de mais perigoso para o espĂrito do que a sua relação com as grandes coisas. AlguĂ©m deambula por uma floresta, sobe a um monte e vĂŞ o mundo estendido a seus pĂ©s, olha para um filho que lhe colocam pela primeira vez nos braços, ou desfruta da felicidade de assumir uma posição invejada por todos. Perguntamos: o que se passa nele em tais momentos? Ele prĂłprio certamente pensa que sĂŁo muitas coisas, profundas e importantes; mas nĂŁo tem presença de espĂrito suficiente para, por assim dizer, as tomar Ă letra. O que há de admirável, diante dele e fora dele, que o encerra numa espĂ©cie de gaiola magnĂ©tica, arranca os pensamentos do seu interior. O seu olhar perde-se em mil pormenores, mas ele tem a secreta sensação de ter esgotado todas as munições. Lá fora, esse momento inspirado, solar, profundo, essa grande hora, recobre o mundo com uma camada de prata galvanizada que penetra todas as folhinhas e veias; mas na outra extremidade em breve se começa a notar uma certa falta de substância interior, e nasce aĂ uma espĂ©cie de grande «O», redondo e vazio. Este estado Ă© o sintoma clássico do contacto com tudo o que Ă© eterno e grande,
O Comportamento SimbĂłlico e o Comportamento InequĂvoco
Na verdade, encontramos desde as origens da histĂłria humana estas duas formas de comportamento, a simbĂłlica e a inequĂvoca. O ponto de vista do inequĂvoco Ă© a lei do pensamento e da acção despertos, que domina quer uma conclusĂŁo irrefutável da lĂłgica quer o cĂ©rebro de um chantagista que pressiona passo a passo a sua vĂtima, uma lei que resulta das necessidades da vida, Ă s quais sucumbirĂamos se nĂŁo fosse possĂvel dar uma forma inequĂvoca Ă s coisas. O sĂmbolo, por seu lado, Ă© a articulação de ideias prĂłprias do sonho, Ă© a lĂłgica deslizante da alma, a que corresponde o parentesco das coisas nas intuições da arte e da religiĂŁo; mas tambĂ©m tudo o que na vida existe de vulgares inclinações e aversões, de concordância e repulsa, de admiração, submissĂŁo, liderança, imitação e seus contrários, todas estas relações do homem consigo e com a natureza, que ainda nĂŁo sĂŁo puramente objectivas e talvez nunca venham a sĂŞ-lo, sĂł podem ser entendidas em termos simbĂłlicos.
Aquilo a que se chama a humanidade superior mais nĂŁo Ă©, com certeza, do que a tentativa de fundir estas duas metades da vida, a do sĂmbolo e a da verdade, cuidadosamente separadas antes. Mas quando separamos num sĂmbolo tudo aquilo que talvez possa ser verdadeiro do que Ă© apenas espuma,