Menino amuado quem te deu tamanho bico foi o tico-tico?
Passagens de Anibal Beça
128 resultadosAbre o camponês sulcos de arado na terra: no seu rosto rugas.
Aboio De Ternura Para Uma Rês Desgarrada Para Astrid Cabral
Fora de tua tribo peixe fora d’água,
bordando as muitas dores no ponto de cruz,
alinhavas rebanhos reunidos na frágua
dos rios da tua infância com escamas de luz.Versos tecidos na cambraia das anáguas
de alices caboclas, yaras-cunhãs do fundo,
encantadas dos peraus, afogando mágoas,
mas que sabem, sestrosas, dos botos do mundo.E os teus pés desgarrados pisaram em nuvens
de ventos sem mormaços, no azul de outras línguas:
águas despidas do alfenim de nossas chuvas.Te sabias folha de relva da ravina
irmã de Whitman e do Khayam simum
próxima do teu gado e rês da própria sina.
Em câmera lenta preguiça na imbaubeira passa a outro galho.
A Morte Sendo Amor
Quantas vezes subi com a pedra às costas
para depois descer com o mesmo fardo
torneio em que sou alvo do meu dardo
próprio, a sangrar nas távolas de apostas.Não me sei vencedor. Tampouco guardo
as dores, ou fraturas mais expostas.
Sei que vou quando chego e não me tardo.
Lição que é nascitura e de ocasosna transversal em curva me celebro
o vencedor, o torto sem atrasos.
Eis aí a certeza derradeiraque chega invitável sem ter prazos:
vivi todas subidas e descidas
amortecendo o amor sem as feridas
No ocaso do outono só o carrapicho gruda na velha calça…
Joropo Para Timples E Harpa
Em duas asas prontas para o vôo
assim se foi em par a minha vida
e com rilhar de dentes me perdôo
trilhando as horas nuas na medidaBilros tecendo rendas amarelas
bordando em vão um tempo já remoto
no sol dos girassóis da cidadela
canto um recanto que me faz devotoA dor que existe em mim raiz que medra
no rastro mais sombrio as minhas luas
talvez não fora Sísifo ou a pedraque encontro todo dia pelas ruas
ao revirar as heras nessa redra
trilhando na medida as horas nuas
Na calma do lago um bufo entre a canarana: peixe-boi respira.
Contemplação
Nas crinas de cavalos reclinados
penteia o vento nuvens retorcidas
enquanto a sombra cai do céu calado
na relva da campina amanhecida.Passeia o sol as hastes sublevadas
dos girassóis lambidos no rocio
que vaidosos se alçam na mirada
narcisos desse espelho em seu feitio.A calma da manhã veste amarelo
e despe toda angústia na brandura
das cores desse dia sem duelo.Sendo o perdido me acho sem procura
sofrendo tenho sido meu flagelo
mas esse olhar agora me inaugura.
Partitura alegre: cai a chuva sobre o charco no ritmo dos sapos.
Espelho (I)
O que sobrou de mim são essas sombras
Sobrada sobra, cinza dos minutos,
Que me alimenta os ossos da memória.Nessa voragem vaga, um mar de calma
Lambendo vem a pressa em que me aposto
Na duração que escorre nessa arena.Do fim regresso fera não domada
Ao mesmo pouso de ave renascida
Para o sol da surpresa nas janelas
Escancarando um solo transmutado.De baixo para cima é que renovo
As vestes da sintaxe que componho
Clara inversão da jaula das palavras
Para fechar sem chave a minha sina.
Prólogo
Cavo a cova como um cavalo os cascos cava
se no cavá-lo invoca a fúria de ferir
E tanto mais se cava que a alma não se lava
e as águas já me levam léguas a fingirCava costura cavo à cava enviesada
e o talhe tinge a sombra em descaída pena
Nessa escritura a sina foge desgarrada
e o corte torce a mão e a garra do poemaE dono não sou mais senão o torto artífice
dessas linhas traçadas a dois e por um
E assim me assino esse uno e esse outro Majnun
que por louca paixão da noite é seu partícipemesmo sem Laila veste a dor e se vislumbra
nos lobos do deserto donos da penumbra
Senhora I
No calmo colo pouso meus segredos
Senhora que sabeis minhas fraquezas.
convoco só convosco o que antecedo
na lira ensimesmada da incerteza.Não sei se o vero verso do degredo
vem albergado ou presa de represa
das frias águas íntimas do medo
lavando o frágil lado da tristeza.A depressiva face não mostrada
esplende em vosso espelho que me abriga
lambendo o sal dos olhos da geada.Águas que são do orvalho da fadiga
de recorrentes gotas espalhadas
regando as vossas mãos de amada e amiga
Já é quase dia e a lua brilha no lago. Ainda é primavera!
Poeira (Para José Felix)
Do pó ao pólen posta-se o poema
na penumbra do parto antecipado.
Abre-se uma janela sem algema
presa somente do seu próprio fado.Areia e barro, sol com sua gema,
a gala clara do ovo, visgo dado
ao solo só de vértebras, seu tema
variado na avena: chão arado.O tropo, o trapo, as vestes: eis aí
a massa que caldeia essa bigorna
ensolando alimárias ao se de si.Nada é constante e tudo se transforma.
Eppur si muove em ánima no giz
escrito no vaivém se vai e torna.
Canto e contracanto: o pica-pau reclamando do som do machado.
Vermelho relâmpago irrompe do capim seco: a cobra coral.
Um pombo no mar traz ao bico verde ramo: terra à vista?
Espera
Teus minutos são estalactites
agulhas finas de cal e água
setas refiladas de um relógio
na areia do deserto clepsidra.Caroços de fruto apodrecido
para uma nova semeadura
em colheita sem nenhum estorvo
anunciando o pródigo regresso.Que tu venhas sem a matemática
sem a tabuada fria das horas
rachar minha parede de pedra.Que tu venhas sedutora chama
pluma de pássara renascida
vinda com teu fogo e não com cinzas.
Avena Pastoral
Harmonia de coxas protetora
do presente esperado como prêmio
antevéspera és, a domadora
dos gestos apressados no proscêniodo palco em que inauguro-te pastora
de ovelha desgarrada,vil boêmio,
peregrino da noite assoladora,
a solar no teu corpo um abstêmiocanto, de partitura tão antiga,
em que tecidos sons alucinados
são sedas de silêncio na cantiga.Uma cantiga em gozo emparelhado.
E tu na flauta tocas pra que eu siga
lambendo o sal no lago desgarrado.